Acordar com a realidade de muitos

por Ricardo Brazileiro
Local resiliency with regard to disasters means that a locale is able to withstand an extreme natural event without suffering devastating losses, damage, diminished productivity, or quality of life and without a large amount of assistance from outside the community.
(Mileti 1999, pp.32-33)

As fortes chuvas na Região Metropolitana do Recife caíram como uma luva para o debate sobre resiliência urbana. Sabemos que viver em situações extremas causa, por um lado, transtornos pessoais/coletivos de ordem material e humana, e por outro, habilita táticas de ativismo e colaboração comunitária para resolução de problemas. Enquanto transtorno, a percepção é de que a gestão pública municipal ainda não deu tração para as políticas de resiliência urbana. Enquanto tática, o enfrentamento das realidades sociais diárias habilitam um modelo de comunidades resilientes que emerge de baixo para cima nas bordas das cidades.

Projetada para antecipar os eventos e se recuperar dos impactos de riscos naturais ou tecnológicos, os conceitos de cidades resilientes são baseados em princípios derivados de experiências passadas com catástrofes em zonas urbanas. Apesar das forças dos grandes eventos naturais – terremotos, maremotos e tsumanis -, a composição de uma rede social comunitária com sistemas autônomos de sobrevivência surgem nas bordas da sociedade. Essas redes são capazes de se adaptar e recuperar os territórios para novos níveis de sustentabilidade. Essa capacidade de recuperação sem estabelecer o caos é emergente nas áreas urbanas. Em resumo, uma cidade sem um sistema físico e natural resiliente é vulnerável ao desastre. Assim como uma cidade sem comunidades resilientes também são extremamente vulneráveis às calamidades.

Cenário em 1966 a exatamente 50 anos. Nada de novo comparado ao que vivemos nos dias atuais.

Cenário em 1966, há exatamente 50 anos. Nada de novo comparado ao que vivemos nos dias atuais.

Ao que parece, apenas as comunidades periféricas estão preparadas para enfrentar as extremas dificuldades urbanas. A gestão municipal, apesar do acúmulo de experiência com eventos naturais, não apresenta um framework consistente de cooperação com a sociedade para atuar em necessidades imediatas. Não existe agenciamento e governança entre os componentes da cidade quando o momento é de desespero. Na verdade, a ação comunitária é a primeira instância de colaboração para casos urgentes. Geralmente essas ações tornam-se vitoriosas por conta de sua recursividade, mas podem ser danosas, principalmente pela falta de compromisso do poder público em entregar e monitorar ações de mitigação e no preparo, junto com a sociedade, de planos de emergência.

Alagamento no bairro de Cidade Tabajara. Foto tirada às 9h durante as fortes chuvas na região.

Alagamento no bairro de Cidade Tabajara. Foto tirada às 9h durante as fortes chuvas na região.

Para além do diagnóstico apontado, quais os outros motivos que geram essa extrema vulnerabilidade urbana? A obra no Rio Fragoso, em Olinda/PE, que se arrasta desde 2013, é um excelente exemplo. Um investimento público em mobilidade que propõe desafogar o trânsito entre três municípios deveria, no mínimo, estabelecer diretrizes para acomodar as águas urbanas e não ignorar o curso da bacia de um rio de mais de 500 anos. Não existe nenhum plano de naturalização e conservação dos riachos e de áreas alagadas, nem de estudos sobre a impermeabilidade do solo. Os sintomas dessa patologia urbana já atinge um raio de mais de 5km da obra. Bairros que antes resistiam às fortes chuvas, agora sofrem com fortes alagamentos, como é o caso dos bairros de Cidade Tabajara, Ouro Preto, Jardim Atlântico e Bultrins, justamente os territórios que possuem riachos que se conectam à bacia do Rio Fragoso.

Foto na Cidade Tabajara/Olinda

Em Olinda, moradores criam balsas a partir da carcaça de geladeira para realizar travessias pela rodovia.

O que garante a sobrevivência em dias urgentes não é o corpo gestor das cidades. Os mais de 500 anos de respeito à natureza por parte de comunidades tradicionais e os quase 20 anos em que os estudos acadêmicos alertam sobre um planejamento urbano transversal aos desafios ecológicos, sociais e econômicos, não são suficientes para desenhar um percurso de estabilidade e gerenciamento em escala por parte dos gestores públicos. Cabe às comunidades o desafio de reunir esforços por uma prática de resiliência emergente. Na hora do sufoco, os vizinhos multiplicam os braços em busca de soluções de baixo custo, como é o caso da construção de balsas a partir do reuso de carcaças de geladeira. Na foto acima, os moradores percorrem de um lado ao outro da PE-15 para atravessar os vizinhos.

Rua timbiras, Cidade Tabajara

Os vizinhos despertam o ativismo comunitário para ajudar a retirar pessoas e bens materiais das casas alagadas.

Na imagem acima, diversas famílias perderam seus bens materiais por conta do alagamento dos riachos que conectam com a bacia do Fragoso. Famílias que aguardam há mais de 30 anos por um mínimo desenvolvimento urbano para o bairro. Lugares em que a única visita da gestão pública é por meio dos funcionários da limpeza urbana e os tomadores de decisão apenas nas margens da eleição municipal. Boa parte das famílias que sofrem os transtornos da realidade pagam impostos caros para terem seus carros habilitados e suas casas próprias, trabalham na urbe como o cérebro da cidade, mas nas comunidades enfrentam desafios diários de sobrevivência.

Mais um dia de luta para as pessoas atingidas por falta de gestão pública

Mais um dia de luta para as pessoas atingidas por falta de gestão pública municipal.

Por fim, a metáfora resiliência apresenta um debate importante por duas razões. A primeira porque sempre existirá vulnerabilidade nos sistemas tecnológicos e nos sistemas naturais e sociais da cidade, os quais não podem ser previstos por completo. Em segundo lugar, porque as pessoas e as comunidades atingidas constantemente por desafios sociais e naturais possuem mais habilidades para serem flexíveis e adaptáveis a dificuldades, e não as políticas públicas ou os projetos de planejamento urbano mal geridos. Como garantir a execução de estratégias de mitigações a partir do olhar das pontas? Em cidades resilientes, poucos edifícios colapsam e poucas ocorrências graves são registradas. Nela, a imagem dos tomadores de decisão e da população compreende uma ação conjunta para sanar os desafios urbanos. Essa imagem ainda está extremamente distante de nossa realidade tupiniquim. A resiliência é a capacidade de acomodar grandes mudanças sem danos, e isso é fundamental nos tempos atuais. Até quando as vozes de muitos serão caladas pela incompetência e abstenção de tão poucos?