[Entrevista] – “O mercado de tecnologia pode ser um lugar para as mulheres negras”

por Lenne Ferreira

A INCITI/UFPE entrevistou Sil Bahia, idealizadora do projeto PretaLab, que fomenta a participação das mulheres negras no campo da tecnologia e inovação.

Nas maiores empresas do país, as mulheres negras estão concentradas nos cargos mais baixos. São as que possuem a maior taxa de desocupação e as mais submetidas à relações precárias e informais de trabalho. Só 10,4%, dessa parcela da população  tem ensino superior completo – em qualquer área. Dados tão alarmantes serviram de base para Silvana Bahia, diretora do Olabi, organização que trabalha pela democratização da tecnologia, que fundou a PretaLab. A iniciativa tem como motivação maior incluir mulheres negras no universo da tecnologia e inovação. Silvana foi indicada pela INCITI/UFPE, que fez parte da curadoria do Rec’nPlay 2019, para compor uma das atividades do festival, que movimentou o bairro do Recife entre os últimos dias 2 e 5 de outubro.

Para comprovar as desigualdades no campo da tecnologia e inovação, a PretaLab, em parceria com a ThoughtWorks, realizou a pesquisa inédita “Quem Coda o Brasil?, que detalhou esse retrato. Entre os dados coletados, um que revela a importância de entender esse cenário:  21% das equipes de tecnologia do País não possuem sequer uma mulher. Em 32,7% dos casos não há nenhuma pessoa negra e em 95% nenhum indígena está empregado. Para tentar reverter esse quadro, a PretaLab lançou uma ferramenta digital que apresenta perfis de profissionais negras a empresas que buscam mão de obra qualificada.

PretaLab. Foto: Safira Moreira/Olabi

Sil, como Silvana é mais conhecida, mora no Rio de Janeiro, e estava entre os nomes da mesa-redonda do Rec’nPlay com o tema Ciência delas: quebrando barreira e fazendo história na tecnologia, mas infelizmente não conseguiu participar do momento por causa da perda de uma pessoa próxima. Integrante do Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia da Informação e da Comunicação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Cultura e Territorialidades pela mesma instituição, ela foi a primeira selecionada para o programa Lauttasaari Manor Residency na Finlândia, onde, durante três meses viveu em Helsinque, colaborando com o projeto Anti-Racism Media Activist Alliance (ARMA).

Sil é colaboradora da Afroflix, uma plataforma colaborativa que disponibiliza conteúdos audiovisuais online que prioriza produções assinadas por pessoas negras. A ideializadora do PretaLab também recebeu o prêmio Destaques da Cultura Digital: Inovação Social e Tecnologia, concedido pelo Centro Cultural Banco do Brasil e Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ de 2017.

ENTREVISTA

INCITI:  Ao longo da história, o mercado da tecnologia foi ocupado por um nicho muito seleto e privilegiado composto, majoritariamente, por homens brancos. A população preta, que também produz conhecimento e tecnologias sociais, sempre esteve à margem. Como o Projeto PretaLab tem proposto essa reconfiguração?

Sil Bahia: A PretaLab quer reconfigurar isso a partir do momento que tenta estimular o protagonismo de mulheres negras e homens negros no universo de tecnologia e inovação. Estimular, às vezes, pode parecer algo muito vago, mas em ações significa apoiar as iniciativas dessas mulheres, e contribuir para a visibilidade delas, indicar, fazer trabalhos em conjunto. Queremos que o trabalho delas seja encarado como algo relevante. Sair por aí dizendo que essas mulheres existem. Por isso é tão importante esse trabalho de diálogo com outras setores da sociedade: para dizer que a gente existe, a gente tá aqui e a gente faz diferença onde a gente tá.

INCITI: Em países como os EUA, as mulheres negras representam menos de 1% do total de empregadas na indústria da tecnologia. É possível traçar um panorama sobre a presença das mulheres negras atuando na área de tecnologia hoje no Brasil?

Sil Bahia: Aqui no Brasil não existem pesquisas oficiais que mostrem como se dá a presença negra das mulheres na indústria de tecnologia. A PretaLab lançou uns dados do  “Quem Coda BR”, uma pesquisa recente, que mostra que de fato a presença das mulheres negra é pouca e como a gente faz para que essas mulheres ocupem esse espaço. Pensar que esse mercado não absorve essas mulheres porque ele não chega nelas. E esse mercado também não está pronto para receber a presença delas. A gente escuta vários relatos de pessoas que trabalham na tecnologia e é muito difícil se sentirem bem nesses espaços.

INCITI:  Quais são os elementos sociais estruturais que contribuem para excluir essa parcela da população desse mercado?

Sil Bahia: Racismo e o machismo. Pra mim, não existe problema maior no Brasil do que a questão racial. A gente vê isso se reproduzir na área da tecnologia também porque é o reflexo dessa sociedade desigual. Na verdade, aumenta a desigualdade quando esse campo, que é tão poderoso, que é o campo tecnológico,  é um lugar que tem só pessoas padrão: homem jovem, branco, classe média.

Silvana Bahia, diretora de projetos do Olabi e coordenadora do PretaLab. Foto: Safira Moreira/Olabi

INCITI: Como os grandes grupos como o Porto Digital podem contribuir para estimular a presença e permanência da população preta, especialmente mulheres negras, no mercada da tecnologia e inovação? Existe alguma referência que possa ser citada como exemplo de sucesso?

Sil Bahia: Um caminho para contribuir, para estimular a presença das pessoas negras nesse mercado, é formar essas pessoas, ajudar essas pessoas a criarem conexões. Também falar para essas empresas que não vai dar para ser como sempre foi. Todo mundo quer ter o selo da diversidade, mas existe uma estrutura para receber essas pessoas? Existe uma política antirracista e antimachista na empresa? Como a gente fomenta essa cultura também? A sociedade é formada em cima desses pilares. Quando você transfere isso para um ambiente de trabalho não é diferente.

O que tem de existir é uma boa vontade, mas não só no sentido social não, mas de querer de fato transformar essas coisas. Fazer com que esses espaços sejam menos hostis. Criar metodologias, ouvir as pessoas para entender porque elas não estão ali. É porque ela não sabia que aquilo existia? Ou porque ela acha que não pode estar ali? Existem muitos caminhos, mas o primeiro é reconhecer que é preciso trabalhar para estimular a presença e permanência das população preta nesses espaços.

INCITI: É possível falar de futuros sem considerar populações historicamente marginalizadas e excluídas do campo da tecnologia para inovação? Como esse campo pode ajudar a diminuir os abismos sociais de um país como o Brasil?

Sil Bahia: É impossível falar de futuro sem considerar as populações historicamente marginalizadas e excluídas. Esse futuro que a gente fala tanto está sendo construído agora, no presente. E essas pessoas precisam estar fazendo esse presente também. A tecnologia tem um papel que pode ser muito transformador no campo social, mas ela também pode acirrar as desigualdades.  Se a gente fosse depender das tecnologias para resolver os problemas sociais, talvez não tivesse mais nenhum, porque tem um monte de tecnologia. Mas a gente vê que as desigualdades não diminuíram. Mas por que não diminuíram? Porque existe um abismo social, de fato, no Brasil e as pessoas que produzem a tecnologia que a gente usa tem um perfil padrão, que é esse homem, branco, do hemisfério norte.

O nosso trabalho é muito de estimular uma experimentação, mas também uma visão crítica sobre a tecnologia. Quando você faz alguma coisa na internet, você está pagando com seu dado. Mas é um debate muito pouco feito. Nosso papel é estimular também uma visão crítica das pessoas em relação ao consumo. Todo mundo hoje consome, mas pouco se pergunta quem produz. E a tecnologia não é neutra e a gente não pode esquecer disso nunca.

INCITI: Você acredita que é possível mulheres negras ocuparem esses espaços?

Sil Bahia: O mercado de tecnologia pode ser um lugar pra gente, um lugar onde a gente pode contribuir e fazer a diferença. Eu tenho muita vontade de que as mulheres enxerguem esse espaço como um lugar real para elas e eu acho que essa é uma mudança que a gente pode fazer na estrutura da pirâmide social. Esse é um dos meus sonhos de vida.