Somos portas e janelas

por Sabrina Machry

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Amo meu prédio. É projeto do arquiteto português Delfim Amorim; há boatos (e eu os espalho) de que foi feito com restos da obra do Edf. Acaiaca, frondoso e elegante prédio da nobre Avenida Boa Viagem. Mas o meu Edf. Parnamirim – o primo popular – já nasceu contemporâneo, pra-frentex: uso misto, tipologia contínua e térreo ativo desde 1962. Claro, um prédio não se faz só de arquitetura; e um prédio amado envolve o componente social.

Aqui somos apenas cinco “famílias” – para além das definições do Estatuto – , e alguns comerciantes e comerciários, uns mais simpáticos e entrosados conosco do que outros, como em qualquer vizinhança. Mas, de fato, a arquitetura atrai e repele tipos sociais, e a nossa é uma arquitetura do amor, do convívio social.

Somos portas e janelas

Cada apartamento tem duas entradas para o corredor e, em uma escadaria típica de acesso, seríamos no total quatro, mas aqui somos oito portas para o lar “do outro”. É como se a arquitetura nos desse mais oportunidades de interagirmos uns com os outros, e também de trazer mais vitalidade pra área compartilhada.

Aqui não tem interfone; é aquele sistema de campainha mais grito. Se o grito não chegou no último andar (o segundo), quem está no primeiro já fica atento/ligado pra exercer a função de telefone sem-fio que lhe é automaticamente disparada. “olha a água!”, “qual o apartamento?”, “201”, “é na outra escada, moço, depois da sorveteria”.

Deixar a chave na sorveteria já facilitou tantas vezes a minha vida, assim como a senha do wifi aqui de casa já facilitou a vida de quem trabalha lá tantas outras vezes. Esses hábitos cotidianos e a cultura de reciprocidade entre os que moram e trabalham no prédio foram adquiridos desde a primeira semana, da recém chegada ao Edf Parnamirim. Depositar confiança no outro parece aumentar o comprometimento com a relação – ao menos tem funcionado até hoje.

A rua é um espaço sem volta: quanto mais a gente está na rua, menos está dentro de casa; quem é de rua se contenta no máximo em ser janela – muros não nos representam.

Tudo isso me veio agora ao pensamento porque eu ouvi um senhor dizendo que “teve gente que votou pela tia morta…” O senhor (o da rua, não O do céu), estava na loja de baterias de carro, e mesmo numa casa de ciclistas, e numa garagem de bicicletas, essa voz encontrou consonância. Será o efeito desta arquitetura que nos atrai?

Graças a essa relação maravilhosa entre público e privado, ontem pude dizer pra um vizinho da frente que jogava fogos pela “vitória” política: “vai pra casa, não há o que comemorar”. Eu senti o cheiro da pólvora dos fogos por mais um tempo, como sinto o cheiro de esgoto das ruas de uma capital que tem mais da metade da população sem saneamento básico. Falei com o vizinho como falo com quem estaciona em lugar proibido, nas calçadas das pessoas.

Essa arquitetura me dá noção da rua, da cidade, dos problemas urbanos; me forma cidadã, me faz mais do que citadina; me faz votar por interesses que extrapolam muros, famílias, propriedades e interesses particulares.

A nós, arquitetos e urbanistas, precisamos ajudar a formar as pessoas, no cotidiano das cidades e de suas formas de morar. Aos demais, somos todos agentes da transformação e precisamos buscar ser melhores para contribuir com este processo.