Em maio de 2017 foi aprovada a proposta de lei que inclui o brega como uma das expressões artísticas genuinamente pernambucanas. A Lei nº 16.044/2017 assegura a manifestação como bem cultural do estado. Ao mesmo tempo que os ventos começam a soprar à favor, casos de repressão policial contra jovens que dançam passinho, uma das vertentes do brega, nos espaços públicos da Região Metropolitana do Recife (RMR), crescem de forma exponencial. Em resposta a isso, a INCITI/UFPE promoveu mais uma edição do Provocações Urbanas, desta vez com o tema Como conviver sem reprimir? Cultura de rua, juventude e direitos, realizada no dia 31 de janeiro, na sede da INCITI, no Bairro do Recife.

O encontro reuniu pessoas de diferentes realidades. Foto: Suzana Souza
A plateia, de cerca de 90 pessoas, entre estudantes, representantes dos setores de pesquisa, gestão governamental, movimentos sociais e iniciativas culturais de rua, puderam conversar abertamente sobre a ocupação dos espaços públicos pelos jovens e as diversas tensões que envolvem essa prática, como a gestão dos parques públicos, as manifestações artísticas da periferia, o racismo ambiental, a segurança, a repressão policial e algumas possíveis soluções e encaminhamentos para os problemas levantados.
Para o encontro, mediado pela jornalista e pesquisadora da INCITI, Lenne Ferreira, foram convidados a pesquisadora da INCITI, Raquel Meneses, arquiteta e urbanista que atua principalmente nos temas relacionados à gestão de parques públicos; o secretário de Segurança Urbana da cidade do Recife, Murilo Cavalcanti; Maria Helena e Adelaide, articuladoras do Recital Boca no Trombone, projeto de ocupação artística com música e poesia em Água Fria; Juliane Lima, advogada e mestranda em Desenvolvimento Urbano pela UFPE; Cláudio Borba, Delegado Especial da Polícia Civil de Pernambuco; e Jaqueline Castro, produtora de grupos de passinho.

Jaqueline Castro defende que o bregafunk é resistência comunitária. Foto: Suzana Souza
Dança contemporânea e de rua que compõe o movimento bregafunk, o fenômeno do passinho revela um entrelace de impulsos estéticos, sociais e econômicos que precisa ser compreendido com mais cuidado. Principalmente por se tratarem de jovens que em sua maioria vivem contextos limites em suas comunidades. “Converso muito com eles sobre o comportamento em casa, para não se envolverem em coisas que não têm futuro. O bregafunk é cultura da comunidade, vai muito além, está ganhando o país, é resistência”, contextualizou Jaqueline Castro, produtora do grupo As Cacique do Passinho.
Sem muitas oportunidades de lazer, os jovens têm promovido encontros em áreas centrais e públicas do Recife, como o Parque 13 de Maio e o Marco Zero, o que tem trazido uma certa sensação de insegurança aos que não participam do movimento. A pesquisadora da INCITI/UFPE, Raquel Meneses, sinalizou que precisamos de mais empatia. “Os espaços públicos não são tratados de uma forma convidativa para as pessoas, possibilitando que aprendam a entender as expressões dos outros. Como vai entender o diferente se você vive em uma bolha? É preciso estimular um olhar mais carinhoso e cuidadoso com o outro”, sugeriu.

O debate mobilizou cerca de 90 pessoas para a sede da INCITI. Foto: Suzana Souza
O secretário de segurança urbana do Recife, Murilo Cavalcanti, chamou atenção para a segregação social e a relação com a violência. “Vivemos em uma cidade partida, de um lado os ricos, do outro a camada pobre. As pessoas dizem que as comunidades são lugares violentos, na verdade elas são violentadas em seus direitos, não têm um parque, uma praça, uma biblioteca”, explica. À frente do Centro Comunitário da Paz – COMPAZ, Murilo comparou o movimento do passinho com os rolezinhos, que ficaram conhecidos principalmente por “invadirem” Shopping Centers. “Os rolezinhos foram tratados como caso de polícia, a gente buscou diálogo com os meninos que estavam organizando esses encontros. É isso que precisa ser feito nos grandes centros urbanos, a gente quer uma cidade para todos”, defendeu.
Adelaide, articuladora do Recital Boca no Trombone, contextualizou o problema a partir do olhar de uma moradora de comunidade periférica. “Enquanto negra e favelada eu convivo com essa repressão todo dia, os meninos todos os dias de manhã já tão lançando passinho lá com o som nas alturas. É a batalha do passinho que anima a favela. E o estado só olha pragente quando é pra abordar”.

Cláudio Borba falou sobre projetos sociais da polícia. Foto: Suzana Souza
“Uma preocupação grande da atual administração é mostrar que a polícia não é só repressão, e sim prevenção e cidadania. Montamos um programa com o trabalho da polícia, chamado Comunidade Segura, ministrando palestras nas escolas estaduais. É um projeto pra tentar desmistificar e fazer as pessoas acreditarem mais na polícia”, disse o delegado Cláudio Borba, citando iniciativa promovida pela Secretaria de Defesa Social de Pernambuco (SDS).
A advogada Juliane Lima alertou para a necessidade de termos políticas públicas que atendam a população negra e problematiza a ocupação das ruas. “Temos inúmeros racismos: religioso, ambiental, institucional, recreativo. Como a elite se apropria do espaço público, né? Mas ao mesmo tempo ela nega, porque a rua é lugar de prostituta, de ladrão. Mas ao mesmo tempo que a rua não presta, a rua é da elite”, provocou.
A Polícia dança?

O debate contou coma facilitação gráfica da artista gráfica Camila Wanderley. Foto: Suzana Souza
O modus operandi da Polícia Militar foi questionado pela maioria do público presente. “O que tá sendo feito pra alimentar a alma dos policiais, será que eles dançam? Será que eles são treinados pra serem rígidos? Será que não deveríamos fazer os policiais dançarem?”, convida para reflexão Djair Falcão, pesquisador da INCITI/UFPE. Segundo Juliane Lima, o espaço público também reprime a polícia. “Eu acho que os policiais dançam, a questão é onde eles dançam. Eles são tão reprimidos no espaço público, eles terminam não alimentando isso”, concluiu.
Para MC Negrita, a questão é de representatividade. “É uma polícia que pode fazer ação, pode dançar, fazer quadradinho, é uma galera que não vai me representar. Me dói ver meu povo fazendo ações, chamando a galera do tráfico para o rap, e a polícia faz parar porque tamo falando a verdade, e a verdade dói”. A poeta Bione segue a mesma linha. “Não temos acesso à educação e lazer, quando criamos o nosso lazer somos totalmente reprimidos. Como faz pra acreditar na polícia se ela reprime, oprime e mata a gente?”.
Morador da comunidade do Bode, em Brasília Teimosa, o artista visual Stilo Santos chama atenção para a disparidade entre discurso e prática dos projetos sociais da polícia. “Acontece que de manhã quem vem dar a palestra é o major, um cara desconstruído, que quer trocar uma ideia, mas de noite quem tá na minha porta é o GATI, o Grupo de Apoio Tático Itinerante, a Rocam, o GTO (Grupo Tático Operacional). Os projetos sociais são feitos por pessoas do alto escalão que se dizem agentes dos direitos humanos, enquanto as especializadas estão matando e batendo na periferia e na juventude negra”.
A conversa também permeou a questão da política das drogas. “A polícia foi treinada por muito tempo pra lutar contra as drogas, sendo que a guerra às drogas está perdida. Tem que levar essa discussão adiante, amanhã mesmo vou ligar pra Antônio de Pádua (Secretário de Defesa Social de Pernambuco), é preciso compreender isso. O menino que fuma maconha na favela é um delinquente, o da classe média é cabeça?”, provocou Murilo Cavalcanti.
A advogada popular Thaisi Bauer chamou atenção para a abordagem racista e seletiva dos policiais e propôs encaminhamentos após o debate. “O meu primeiro encaminhamento seria de fortalecimento do GT racismo dentro da polícia para que houvesse formação desses policiais em relação ao racismo institucional que tem sido perpetrado reiteradamente”. Como segundo encaminhamento, a advogada sugeriu que o Conselho de Segurança Pública fosse ocupado pelas pessoas da sociedade civil e que tivesse o caráter deliberativo e consultivo. Thaisi ainda fez uma terceira proposta. “Sugiro que a corregedoria seja desvinculada da polícia, pois precisamos de autonomia para que essas abordagens e esses crimes sejam investigados por alguém que seja autônomo”, concluiu.

Teve apresentação de passinho no térreo da INCITI/UFPE. Foto: Instagram/Divulgação
Ao final o público presente teve o privilégio de assistir à apresentação do grupo As Cacique do Passinho, que encerrou com boas energias um encontro marcado pela tensão e exposição de muitas feridas, mas que representou um raro momento de aproximação entre população, grupos culturais, pesquisadores e gestores, apontando assim para a necessidade de uma maior promoção de espaços que fomentem diálogos e danças sobre temas de interesse público.
Encaminhamentos
1) Transparência nos dados dos crimes violentos letais intencionais, com descrição de raça, idade, gênero, nome, lugar da morte;
2) Participação da sociedade civil no Conselho Estadual de Segurança Pública do Estado de Pernambuco, o qual deve ser paritário, consultivo e deliberativo;
3) Maior autonomia para as Corregedorias de Polícia;
4) Realização de audiências descentralizadas na periferias para escuta da população;
5) Participação da sociedade civil nas reuniões do Pacto pela vida.
Repercussão
O debate “Como conviver sem criminalizar” também repercutiu nos veículos de comunicação locais. A Marco Zero Conteúdo aprofundou a discussão com uma matéria que contou com a colaboração do Inciti que aborda os casos de violência policial nas abordagens durante encontros de passinho. A matéria também conta a história do jovem que perdeu a visão de um dos olhos numa dessas ações. O caso foi denunciado durante o debate no INCITI. Confira a matéria completa
Confira áudio do debate na íntegra