Volta e meia discute-se, em rodas de amigos, na imprensa, nas redes sociais, na academia, em esferas diversas, a diferença entre grafite e pixação e a forma como essas intervenções são desenvolvidas e percebidas na cidade. No mês de junho deste ano, com a realização da Operação Grapixo, da Polícia Federal, que buscava “desarticular grupo criminoso dedicado à deterioração de bens públicos e privados (…) no que se refere a pichações de inúmeras edificações e monumentos urbanos”, a polêmica voltou para a pauta do dia e o INCITI/UFPE propôs a realização de mais uma edição do Provocações Urbanas, desta vez com o tema “Como Preservar sem Criminalizar”, que foi realizada na última terça-feira (19), na sede do grupo de pesquisa, no Bairro do Recife.
A plateia, de cerca de 80 pessoas, entre pichadores, grafiteiros, gestores, educadores, arquitetos, museólogos, pesquisadores e estudantes, pôde conversar abertamente sobre direito à cidade, racismo, educação patrimonial, inclusão social, arte e algumas possíveis soluções para o enfrentamento às tensões relacionadas com esses temas.
Para o encontro, mediado pela integrante do INCITI/UFPE e jornalista, Lenne Ferreira, foram convidados o grafiteiro e articulador social Stilo Santos, do Coletivo Pão e Tinta; a curadora e crítica de arte, Cristiana Tejo; o chefe do escritório técnico do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Olinda, Fernando Augusto Lima; a grafiteira e historiadora, Rebecca França, também integrante da Coletiva das Vadias; e a representante do Departamento de Patrimônio da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), Nazaré Reis.
Morador da comunidade do Bode, em Brasília Teimosa, o artista visual Stilo Santos contou que o termo pixo surgiu do piche, retirado do asfaltamento das vias no período militar para estabelecer uma comunicação informal com a população e fortalecer as frentes de resistência contra o regime ditatorial. “Os caras metiam a mão no piche para escrever “abaixo a ditadura” pela cidade”, disse. Stilo também falou sobre a pichação como forma de manifestação e direito à cidade. “A criminalização do movimento social da pichação aparece muito forte na divisão do Muro de Berlim, quando um lado tenta segregar e higienizar e o outro está todo pichado, tentando comunicar uma revolta. É isso que a lógica do capital tem tentado fazer com nós, pretos, pobres e de periferia, que são a maioria na pichação e nos movimentos sociais, hoje”, explicou.
Crítica especializada em arte contemporânea e doutoranda, Cristiana Tejo lamentou o conservadorismo que tem se instaurado no Brasil, impulsionado pelo impeachment da então presidente, Dilma Roussef. “A gente tem que entender essa ação no âmbito do processo político. As pessoas não têm conseguido se expressar, principalmente os artistas”. Tejo, que acompanhou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) acerca da polêmica da exposição Queermuseu, se disse decepcionada com os conceitos apresentados pelos parlamentares: “O que é e o que não é arte é uma discussão eterna, assim como patrimônio. Todos esses conceitos são dinâmicos, não são estáticos, porém essas discussões, que têm acontecido na nossa história recente, têm desmerecido os pensamentos e reflexões de quem está diretamente envolvido, de quem desenvolve e pensa a produção artística”.
No Brasil, a prática do grafite foi descriminalizada em 2011 – desde que com autorização do órgão competente – mas ainda não existe uma regulamentação com relação ao pixo. O técnico do Iphan, Fernando Augusto Lima, comentou sobre a complexidade de se desenvolver políticas públicas sem a possibilidade de consultar os diferentes segmentos da sociedade. “Dificilmente a gente consegue reunir plateias tão diversas para ter discussões como essa de hoje. Muitos grupos sociais, de expressão artística, não têm esse hábito de se organizar. Então, quem está fazendo política pública sente dificuldade de dialogar com esse público todo”, comentou. Quanto à criminalização, o mesmo esclareceu que apesar de “o Instituto ter poder legal de polícia”, a legislação do Iphan “rege a preservação ambiental e não a criminalização da pichação”.
Já a arquiteta Nazaré Reis abordou os danos que o grafite e a pichação representam para o patrimônio construído. “Se o grafite é arte e a arquitetura também, é preciso refletir sobre o suporte, sobre a interação com o suporte, já que as tintas utilizadas são muito agressivas para as edificações históricas”, disse. Representante da Fundarpe no Conselho de Preservação de Sítios Históricos (CPSH), Reis comentou que, apesar da descriminalização em 2011, a questão ainda não está resolvida. “Existe a necessidade do diálogo e da aproximação entre quem quer se expressar e quem mora e defende o lugar. A gente não sabe e não conhece o outro lado. Estamos tentando estabelecer uma norma de convivência. Temos trabalhado com a possibilidade de um pacto, no sentido de propor espaços em que fosse permitida a expressão da grafitagem”, pontuou.
Além de responderem a pergunta que deu o tema do Provocações Urbanas, os convidados também foram desafiados a opinarem sobre a questão “Como se manifestar sem degradar?”. A historiadora e grafiteira Rebecca França rechaçou essa possibilidade: “Pra mim, me manifestar, sem degradar, não existe. Eu preciso degradar. O sistema, eu quero que ele caia, tudo que estrutura esse sistema onde eu vivo precisa ruir”. Com uma fala firme, Rebecca falou do seu desconforto sobre os posicionamentos. “Pra mim é muito cruel as pessoas dizerem que é preciso pensar na dignidade do patrimônio, quando outras pessoas não têm dignidade dentro das suas próprias casas, nas suas comunidades. As pessoas precisam comer, ter lazer, passar de deixar suas casas invadidas pela polícia”, e continuou, “a pixação tem o potencial e a beleza do grito, de dizer “eu existo, eu tô aqui e eu vou continuar fazendo tudo isso””.
A conversa também permeou a questão da educação ambiental. Stilo falou sobre a negação de acesso sistemática a que as pessoas da periferia estão sujeitas. “São oito homens homens da Zona Norte de Olinda que estão sendo criminalizados (pela Operação Grapixo) por não conhecerem a educação patrimonial. Não se fala disso nas escolas de Olinda. Pode ter em algumas do estado. Mas quando se fala nessa educação patrimonial, a gente tem acesso a esses espaços históricos? A nossa percepção sobre esse espaço é potencializada? É empoderada? Se não há identificação, eu não uso aquilo”, disparou.
Cristiana Tejo complementou o raciocínio, dando como exemplo o Museu de Arte Contemporânea (MAC) de Pernambuco, fechado desde 2016. “O MAC tem um acervo preciosíssimo, mas esse museu nunca foi trabalhado de uma maneira viva. Então a pessoa passa na frente do museu e não sabe nem o que é aquilo, não sabe o que tem lá dentro”, disse. Nazaré Reis, da Fundarpe, classificou como fundamental o papel desenvolvido pela instituição na área do Patrimônio, mas lamentou o fato de a função não estar sendo “efetivamente executada”.
Ao final da conversa, muitas propostas de encaminhamento surgiram. Natan Nigro, pesquisador do INCITI/UFPE, que também é integrante da Sociedade Olindense de Defesa da Cidade Alta (Sodeca), convidou os presentes a participarem do debate sobre patrimônio e grafite, que deverá ser realizado em Olinda, na próxima semana. O pedido de uma audiência pública em Olinda, a respeito de arte e educação patrimonial, foi aceito pela secretária Executiva de Patrimônio de Olinda, Ana Cláudia Fonseca. O Iphan se colocou à disposição para contribuir com o reconhecimento da pixação enquanto expressão artística e houve ainda a sugestão de promover momentos de troca entre os grafiteiros e os representantes da educação patrimonial, a fim de construir um diálogo com a juventude.