Sobre Drags e Cidade

Um pequeno ensaio sobre as vivências de artistas drag queens na cidade do Recife

*Por Emerson da Cunha

No mês de junho de 2017, o INCITI – Pesquisa e Inovação para Cidades, rede de pesquisadores da UFPE, realizou a roda de diálogo Cultura Drag e Cidade, junto com os artistas da cidade do Recife, Peu Carneiro, que performa a drag queen Lara Beckney; e a performer Karma; além da participação da jornalista e pesquisadora Lívia Maria, de João Pessoa, que produziu a monografia “Bitch I’m From Recife” sobre a cena drag recifense. A data do encontro coincidiu com a exibição do último episódio da nona temporada do reality show estadunidense RuPaul’s Drag Race. Na ocasião, foram debatidas as vivências de drag queens do Recife e os modos pelos quais o programa influencia, desde 2009, uma nova onda de drags pelo mundo.

Capitaneada pela drag queen norte-americana RuPaul Charles, o programa, que leva seu nome, acompanha, a cada edição, um grupo de drags a enfrentar uma série de desafios, como costurar, cantar, atuar e performar. Os momentos altos das temporadas ficam por conta da disputa de “lipsyncs“, ou dublagens, realizada pelas duas drags com mais baixa colocação ao final de cada episódio. Uma delas fica (“Shantay, you stay!”), enquanto, para a outra, sobra a eliminação (“Sashay, away”).

Roda de conversa foi realizada no térreo do INCITI | Foto: Túlio Rodrigues

O público do reality consome especialmente pela internet, em sites de produtos audiovisuais por demanda, como o Netflix, ou ao baixar os episódios a cada semana, criando comunidades que se comprometem nessa divulgação e na legendagem ao público brasileiro. Isso porque o programa não é exibido de forma sincrônica na televisão aberta nem na fechada no Brasil, embora temporadas anteriores possam ser acompanhadas há algum tempo em canais de TV a cabo no país.

Emancipadas por meio da atuação digital – nos grupos via mídias sociais, nos tutoriais publicados em sites como o Youtube ou webséries temáticas, como o canal local DRAGR TV -, a grande questão é de que modo a cidade, na sua materialidade, se relaciona ou abarca essa cena. Quais as vivências são permitidas a esses e a essas artistas no cenário urbano, quais lugares são ou podem ser ocupados, e de que modo a artificialidade aparece na urbe. Essas foram algumas das questões que tentamos responder ao longo da nossa conversa. Abaixo, seguem alguns dos pontos que foram discutidos naquela noite:

Influência do RuPaul’s Drag Race

O reality show, segundo a pesquisadora Lívia Maria, foi responsável por humanizar o fazer drag, ou seja, mostrar os artistas por trás das personas criadas: sentimentos, estórias, fragilidades e forças. Além disso, o programa acabou criando um formato que transformou a produção drag em entretenimento e, por isso, de certo modo, mais palatável aos gostos de um público jovem. Outro ponto é que, com os desafios multitarefas do reality, as queens participantes são cobradas pelo cuidado com os detalhes de suas ações e produções, o que levou a uma espécie de profissionalização das drags pelo mundo.

No entanto, uma das perspectivas negativas é a de que, embora tenha dado visibilidade à arte drag, o programa representa, como se referiu Lívia, apenas “a ponta do iceberg” das vivências e dos trabalhos das drag queens, que abarcam também uma série de outras performances, problemas, formas de vida e de trabalho.

Convidadas e convidados trocam experiências com plateia | Foto: Túlio Rodrigues

A vivência na cidade

Os espaços de performance e vivência das drags na cidade do Recife são considerados limitados, e estão, especialmente, circunscritos à área de localização da boate Metrópole e os bares em adjacência, área denominada sarcasticamente como “Complexo Maria do Céu”, em referência ao nome da proprietária da casa noturna. Seria, esse, então, o ambiente em que as drags dessa nova onda se sentiriam mais seguras para exercer suas personas e suas performances. Importante frisar que esse “complexo” também compreende a rua, que é ocupada nos dias de apresentações e das festas LGBT ao redor.

Os demais espaços de vivência são as festas feitas especialmente por drags na cidade, ou nas quais a temática está em evidência. Quando são convidadas a fazer trabalhos em outros lugares, como shoppings, lojas ou inaugurações, a respeitabilidade é alcançada com o estereótipo da drag comediante, que está ali para fazer rir e “tirar onda” das pessoas, sem muito espaço para outras performances.

Peu Carneiro narrou um momento em que, quando montado de Lara Beckney, precisou ir para casa de ônibus no início de uma manhã, quando trabalhadores e trabalhadoras estavam saindo em direção a seus respectivos ofícios. A defesa criada para um possível preconceito foi performar a Lara de forma cômica, ao falar com os usuários dos ônibus em tom de brincadeira, dizendo coisas como “bom dia”, “ninguém vai falar com a drag aqui?”, “a drag vai ficar magoada, viu?”. Porém, como foi argumentado por um dos participantes no público, a drag queen deveria ser respeitada como qualquer trabalhador ou trabalhadora que estivesse voltando pra casa após uma noite de trabalho.

Empoderamento feminino por meio da arte drag

Karma incorporou a arte drag ao dia a dia | Foto: Túlio Rodrigues

Tanto Lívia quanto Karma são mulheres que fazem drag – embora Karma não faça mais, uma vez que assimilou a sua própria personagem ao seu cotidiano; Lívia, por sua vez, deu uma espécie de “distância” ou “hiato” de sua drag, a Maddie Killa, após utilizá-la como ferramenta de pesquisa. Karma explanou sobre o quanto a arte drag estimulou o fazer criativo, a autoestima e a segurança, em momentos nos quais precisava extravasar possíveis angústias ou problemas. Que o ambiente LGBT permitiu e permite que as mulheres possam fazer drag de maneira mais segura e se portar com mais respeito e segurança.

No entanto, as mulheres ainda sofrem o preconceito das próprias drags, em geral feitas por homens gays. Alguns dos argumentos passam por uma possível “facilidade” na montação do feminino, pois, segundo eles, elas não passariam pelos mesmos “problemas” como usar perucas ou “aquendar a neca” (expressão para o ato de “esconder” o pênis para as apresentações). Além disso, o desrespeito pode vir para além das insinuações ou preconceito dentro da própria cena drag. O corpo, elas enfatizam, apesar de aparentar estar em mais exposição como drag queen, não dá o direito para que as pessoas possam se aproximar ou tocar sem o devido consentimento.

Segundo participante da plateia, a proposta das mulheres em fazer drag vai além de performar o exagero ou a ilusão do feminino (aquilo que performam cotidianamente), mas de desconstruir e construir outras feminilidades, de poder se vestir, se maquiar, se portar ou performar de outras maneiras, de se reconstruir e se reconstituir não apenas como mulheres em si, mas também na potência de outras diversas performances e de outras corporalidades.

A relação com a noite

Em conversas anteriores à própria mesa, Karma me dizia que percebeu o quanto a cidade pode ser “acomodadora”, ou seja, como pode permitir mecanismos de receber e comportar as drag queens e outras pessoas. A noite, em especial, se apresenta como espaço relativamente aconchegante para as performances mais desviantes. É nela que Karma afirmou ter mais afinidade e mais segurança para performar.

Palavras Finais

RuPaul Charles influencia a juventude drag | Foto: Túlio Rodrigues

Os problemas nas vivências das drag queens em relação à cidade, as questões sobre seus espaços de vivência ou mesmo a sua recepção dentro de territórios outros que não os LGBT me fazem pensar sobre: onde está o lugar da artificialidade na cidade? De que modo podemos performar de maneiras distintas da norma em que fomos colocados e colocadas ao nascer, e que, cotidianamente, nos diz o que fazer, como fazer, para onde ir? Nesse sentido, o fazer drag não poderia ser um disruptor de ações e de estéticas da própria cidade, da própria relação com os espaços, de ocupação estética artificial de uma espécie de conduta hiper realista de nossas ações?

A drag pode apontar não apenas para a ilusão do feminino e de sua possível essencialidade e natureza, mas também para a ilusão das performances de gênero em geral e sua ontologia como construção social. Não se trata apenas das performances do feminino, mas de outras corporalidades e animalidades, de personagens e de objetos, de robôs e de ciborgues. Trata-se da construção de outras estéticas e também de demais éticas na cidade, na sua construção e nas suas afetividades e cenas. Uma drag pode ir pagar a conta no banco? Ela pode performar em um cotidiano fora das festas e das boates? Ela pode se pensar outras personalidades, outros corpos possíveis?

A drag denuncia como as nossas constituições são feitas sempre de artifícios: nossas roupas, nossas vozes, nosso jeito de andar, os objetos que se acoplam aos nossos corpos (os sapatos, os óculos, os aparelhos dentários, os anéis), e hiperboliza tal artificialidade para mostrar que nada é natural, e que muitas outras performances são possíveis nas nossas vivências sociais, culturais e urbanas. E mais: que os nossos corpos podem simular e dissimular facetas, essências, almas e personalidades. Enfim, que podemos ser muitos e muitas em um só corpo e ao redor de muitos outros corpos.

* Emerson da Cunha é mestre em Comunicação – Fotografia e Audiovisual pela UFC e jornalista formado pela UFPB. Fez a mediação da mesa Cultura Drag e Cidade na noite do dia 23 de junho de 2017, no INCITI.