O som do metrô passando é tão familiar quanto a voz de mainha. Eu não conseguiria demarcar no tempo quando foi a primeira vez que fiz uma viagem de trem. Mas, posso dizer que, desde a infância, o minhocão de aço sempre serviu de ponto de partida para os poucos passeios que minha mãe tinha condições de custear, normalmente parques públicos como o 13 de Maio. Àquela época, além do transporte mais acessível, o metrô era também o nosso vizinho. Durante um período, talvez três ou quatro anos, quando eu ainda não tinha chegado aos 10, minha família e eu moramos numa ocupação que tinha como limite o muro da Estação do Barro, Zona Oeste do Recife. O quintal da nossa casa topava na muralha que se estendia ao longo de toda a ocupação.
Todo santo dia, a gente ouvia o primeiro e o último trem passar. O que inicialmente era barulho, rapidamente, se aninhou nos nossos ouvidos. Recordo que cada ida ou vinda do metrô, fazia o chão da nossa casa estremecer e eu achava aquilo divertido. Mas meu pai, comerciante, homem negro sem muita instrução, que atuou como liderança de algumas ocupações – o que, na época, chamávamos erroneamente de invasão -, vivia tentando encontrar um lugar melhor para criar as filhas. Ele dizia que não morria sem deixar a família dele numa casa. Assim foi. Mapear terrenos baldios era uma prática dele, que, mesmo sem muita consciência política, estava fazendo valer seu direito básico à moradia. Por isso, junto com outras pessoas, investiu em um nova empreitada em um lugar menos inóspito. Dessa vez, o novo barraco não era colado no muro da Estação do Barro, mas continuamos bem próximos, cerca de 80 metros, e o som do trem nos seguiu.
Trens antigos da Estação Central do Recife, que antes era passagem para os usuários e, hoje, faz parte do Museu do Trem. Infância e adolescência costurada pelos trilhos. Dos primeiros passeios à faculdade. Dos encontros marcados na Estação ao primeiro Abril Pro Rock. Essas idas e vindas me fizeram decorar a ordem de todas as estações, os avisos da gravação: “Dim Dom. Aguarde o trem antes da faixa amarela”. Na memória da minha infância, o metrô era muito mais vazio. Lembro de perguntar a mainha porque pouca gente usava o transporte. Ainda não fazia ideia da limitação do percurso. Para mim, era tudo muito distante e ficar na janela era, sem dúvida, a melhor parte do trajeto. Naquela época, mais de 20 anos atrás, tinham menos espigões na paisagem. De sob os trilhos, dava pra ver a rua onde morávamos e a da minha vó também. A segunda melhor parte era desembarcar na Estação Central do Recife, onde artistas se revezavam para chamar a atenção dos usuários que ali passavam. O homem da cobra era um dos mais famosos. Formava uma roda ao redor pra vê-lo domar o bicho que, espero, tenha conquistado alforria.
Naquela época, a Linha Centro só ia da Estação Rodoviária à Estação Central do Recife. Era única, o que, obviamente, não dava conta do fluxo de passageiros de uma capital. O metrô também não levava até perto de nenhuma das praias urbanas. Por isso, ver o mar era passeio caro e que envolvia uma grande locomoção. Acho que esse período era muito lucrativo para quem organizava piquenique. Lembro de vários, inúmeros, organizados no meu bairro para locais como Cachoeira do Urubu, na Zona da Mata, Itamaracá, no Litoral Norte, e Gaibu, no Litoral Sul, entre outras. Foi com a chegada do Sistema Estrutural Integrado (SEI) que a gente pôde circular mais, pagando menos. A linha de ônibus “Joana Bezerra/Boa Viagem”, uma das primeiras integrações a inaugurar, que sai da Estação de Joana Bezerra, representou um novo marco na vida de muita gente, incluindo a minha. Agora, era possível chegar até a praia cartão-postal-da-cidade com apenas um bilhete. Os moradores da área é que não curtiram tanto esse estreitamento de laços com a banda pobre da cidade. Mas a gente ia e curtia IGUAL. Era tipo piquenique também.
A chegada das integrações foram diretamente responsáveis pela mudança da dinâmica dentro dos metrôs. Todo mundo comemorou a possibilidade de se locomover mais pagando apenas uma vez. Mas a estrutura da Companhia Brasileira de Trens não estava preparada para tanta demanda. Quando escrevi sobre as tensões entre os usuários de trem para a extinta Revista Aurora, que circulava no quase extinto jornal Diario de Pernambuco, conversei com a administração. Soube, por exemplo, que os gastos com dedetização de ratos eram enormes e, por ano, chegavam à casa dos milhões. Tudo por causa da sujeira acumulada nos trilhos, grande atrativo para os roedores. Além de representar riscos para a saúde pública, eles também danificavam fiações, o que acarretava e (acarreta até hoje) problemas técnicos, gerando mais custos com manutenção. Mas a sujeira não vai parar nos trilhos sozinha. São vários os culpados: quem joga, quem vende alimento, quem não investe na conscientização e educação das pessoas. Quinze toneladas de lixo são retiradas por mês das estações do metrô do Recife.
Além do SEI, a criação de mais linhas impactaram na dinâmica no cotidiano do metrô. Atualmente, são vinte e nove estações que somam 71 quilômetros de extensão transportando cerca de 600 mil usuários por dia. A demanda maior está concentrada na linha Centro, embora a Sul tenha uma demanda cada vez mais crescente. Tudo isso significa mais gente convivendo, se esbarrando, se empurrando. Mesmo em horas que não são de pico, o fluxo é intenso. Dentro e fora das estações, as tensões são várias e conecta indivíduos que desempenham papéis diferentes. Não só de ambulante é feita uma viagem de trem. Tem mensageiro da palavra de Deus, pedintes mendigando trocados para o tratamento da tuberculose ou para o leito do menino. Há, especialmente, a atuação dos músicos. Essa, pode ou não agradar, depende do timbre da voz e da forma de abordagem. Alguns, andam com caixas de som e até microfone headset. Do Barro, onde normalmente embarco, até a Estação Central, são seis estações: dá para forrozar, relembrar sucessos de Roberto Carlos ou curtir o flow de umas rimas improvisadas. Nesse contexto, diversidade, pelo menos pra mim, pode ser traduzida por: Diversa Cidade.
A depender do seu humor ou do clima, uma viagem de trem pode oferecer sensações tão diversas quanto os personagens com os quais cruzamos. O tom humorístico de alguns vendedores, pode arrancar um sorriso. Mas uma tirada machista pode te dar tanto abuso a ponto de te fazer trocar de vagão. Como em qualquer ambiente, conviver no metrô exige muita paciência e noção de limite entre seu espaço e do outro. Claro que ninguém leva isso muito a sério. Não vão te pedir licença, nem sempre os lugares reservados estarão ocupados por quem tem direito. O excesso de barulho, esse sim, pode ser o maior dos incômodos. Talvez por isso tantos fones. Eu não gosto. Quase nunca uso. Mas entendo quem lance mão dos fios para buscar um pouco de paz ou foco na leitura. Mas tem quem tenha verdadeiro pavor deles e faça questão de compartilhar com todos e todas as suas músicas prediletas. E aí não vai faltar Troinha, Edson Gomes ou Racionais na trilha sonora da viagem, além dos hinos evangélicos também. Por sorte, dá até para escutar um de cada vez.
Para alguém que vivenciou dias de um poético silêncio entre paisagens de céu aberto, o metrô do Recife é, hoje, um lugar onde memória afetiva se mistura ao sentimento de aflição também. Não é possível mais olhar pela janela e flutuar por entre as nuvens e cores de casas ignorando toda pobreza que passa bem ao lado. Plataformas, corredores e vagões servem de batente para muita gente em busca de sobrevivência. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do último trimestre de 2017, Pernambuco encerrou o ano com 723 mil pessoas desempregadas, a segunda maior taxa do país. Desde 2015, segundo o IBGE, o Estado vem registrando aumento da taxa de desocupados. E aí, quando eu vejo tanta gente vendendo nas estações, esses números se materializam. E eu fico constrangida de reclamar do calor, do apertado, da falta de educação dos vendedores, que passam acotovelando, do barulho que eles fazem na disputa por clientes.
Eu não posso reivindicar uma viagem mais tranquila e sentir saudade dos tempos em que menos passageiros utilizavam as linhas porque eu sei que, para muita gente ali, usar integração é a forma mais barata de buscar uma vaga de emprego ou visitar a parte da família que mora em cidades como Camaragibe e Jaboatão. A luta é diária. Para todo mundo. Mas precisa ser justa com o povo. E é justo garantir mais dignidade para essa parte da população da qual eu faço parte. Conforto, pontualidade e uma estrutura de qualidade são itens que, aí sim, fariam muita diferença na vida de quem precisa do minhocão para se locomover. A estação Central tem três escadas rolantes. Mas, no final do dia, na maioria das vezes, nenhuma está funcionando. E eu me pergunto: se não conseguimos ter uma escada rolante funcionando regularmente, como poderemos contar com um metrô que funcione com eficiência?
Quase que diariamente, a circulação dos trens é suspensa em determinados trechos por causa de algum problema técnico. É só passar a vista nos portais de notícia para encontrar notas enviadas, de última hora, pela CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos). Algumas estações, como Joana Bezerra, estão, praticamente, em situação de abandono. E eu nem vou falar aqui dos profissionais que atuam na rede, que devem, também, enfrentar várias dificuldades, vide o número de paralisações dos metroviários. Diante desse contexto, não tenho como desejar o metrô da minha infância de volta. Quero um metrô mais inclusivo, sim, eficiente, rápido, limpo, com comércio organizado e seguro. Mas acima de tudo, eu quero um metrô que, mesmo nos horários de maior fluxo, me permita continuar revisitando as memórias da minha infância, quando meus pensamentos vagavam – e ainda vagam!-, pela paisagem que passava no lado de fora da janela. De lá, de onde também se vê miséria, é possível sonhar com o horizonte de um Recife que locomova melhor toda a sua gente.