* Foto: João Urban
NOTA PÚBLICA INCITI/UFPE
Fomos surpreendidos com a notícia de que a Câmara Municipal do Recife decidiu dar continuidade ao processo de análise e aprovação do Plano Diretor do Recife. Atitude essa faltando poucos dias para o final do ano, em meio à pandemia de Covid-19 e no apagar das luzes da gestão 2016/2020.
As mais de 300 emendas ao plano, que vem sendo construído em um processo criticado pela falta de transparência e calendário acelerado, foram analisadas pela Comissão Especial do Plano Diretor do Recife de forma apressada, em menos de quatro dias e com portas fechadas – sem chance de participação popular.
Como se não fosse bastante analisar e votar o Plano Diretor de forma esvaziada de legitimidade, a gestão municipal enviou à câmara o projeto de lei 24/2020, autorizando o remembramento de lotes acima de 250m² em Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) localizadas nos limites da Área de Reestruturação Urbana (ARU). Tal medida não só aponta no sentido oposto ao do bom senso e boa política urbana, pois coloca em risco populações de ZEIS já estabelecidas e integradas ao tecido urbano e social da cidade, como vai de encontro ao que é definido na própria legislação municipal. O artigo 9° da lei do PREZEIS (Lei Municipal 16.113/95) estabelece que “o lote máximo a ser considerado para as ZEIS será de 250m² e que a área do lote que exceder o limite traçado deverá ser desmembrada (podendo resultar em um novo lote, complemento de outro lote, área pública ou área verde)”.
A possibilidade de remembrar lotes em ZEIS traz um precedente perigoso que põe em risco décadas de política urbana de direito à moradia digna e deve ser vista com muita cautela pela sociedade.
Para completar, um decreto foi editado pela Prefeitura e Conselho Municipal de Meio Ambiente (COMAM) regulamentando uso e ocupação do solo na Unidade de Conservação da Paisagem (UCP) Parque da Tamarineira. A regulamentação libera a construção de edificações com gabarito de até 24 metros de altura e ocupação de até 50% do solo edificável dentro da UCP. Apesar da justificativa de que o decreto teria função de regulamentar o instrumento urbanístico de Transferência do Direito de Construir (TDC) para este caso, a forma mais adequada do ponto de vista jurídico e das políticas de planejamento urbano deveria ser de definição de um Plano de Manejo para a UCP Tamarineira, instrumento mais adequado para salvaguarda ambiental e paisagística da UCP em questão.
Ainda que pese a necessidade de se estabelecer regulamentação para o TDC, ela deve ser entendida como uma política pública para a cidade como um todo e não em função de necessidades casuais e específicas. Mais uma vez, a medida abre um precedente perigoso para a proteção do verde e paisagem natural urbana do Recife.
O futuro da cidade
Um plano diretor é o instrumento que norteia o planejamento para os próximos 10 anos de uma cidade.
Como será essa cidade? Como ela garantirá qualidade de vida para sua população? Como enfrentará os impactos das mudanças climáticas? Como dará condições de vida digna para as crianças e próximas gerações?
As ZEIS, por sua vez, são um instrumento urbanístico histórico de salvaguarda do direito constitucional à moradia para populações de baixa renda, e vale ressaltar que o Recife foi pioneiro na implantação de ZEIS na década de 80, quando ainda não havia o Estatuto das Cidades e demais políticas habitacionais de garantia do direito à moradia.
Já as UCP foram instituídas com o objetivo de garantir a conservação da paisagem natural preservada da cidade, com destaque para as massas verdes e corpos d’água que resistem ao desenvolvimento urbano até hoje. No contexto das mudanças climáticas, considerando que o Recife foi indicado pelo IPCC (Painel Intergovernamental para as Mudanças Climáticas) como umas das cidades mais vulneráveis à emergência ambiental. Instrumentos como os Planos de Manejo das UCPs garantem a manutenção e conservação destas áreas, além da destinação de usos compatíveis com suas características, tendo em vista sua relevância cultural e histórica e ambiental.
Nos últimos anos, o Recife desenvolveu estudos e planos com a efetiva participação da sociedade civil, universidades e instituições, como no caso do Parque Capibaribe, Plano Centro Cidadão, Inventário de Emissão dos gases de Efeito Estufa ou mesmo o Recife 500 anos. Indicando que se buscou priorizar o planejamento da cidade com base em evidências científicas, na contribuição da sociedade e na busca por solucionar estruturalmente e estrategicamente os diversos desafios urbanos do Recife.
Porém, como pode ser observado, há um transparente descompasso entre o que se tem planejado e debatido para o futuro da cidade e as atitudes e decisões políticas do executivo e legislativo municipal no contexto do planejamento urbano para o futuro da cidade. É urgente que gestores e legisladores no Recife reflitam sobre qual cidade eles querem deixar para as futuras gerações. As mudanças climáticas, a desigualdade socioespacial e a miséria são testemunhas dos erros e acertos de políticas urbanas pautadas por interesses que não sejam o da sociedade como um todo.
O preço será pago por todos…