Estudo mostra que mulheres negras da periferia são mais afetadas no acesso à cidade

“Quem são as mulheres em situação de maior vulnerabilidade e com menor acesso potencial à cidade?”. A resposta ao questionamento veio à tona a partir da pesquisa “O acesso de Mulheres e Crianças à Cidade”, realizada pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITPD Brasil) e disponibilizada nesta terça-feira (23), no site da organização, que promove o transporte sustentável e equitativo, concentrando esforços para reduzir as emissões de carbono, reduzir a pobreza e melhorar a qualidade de vida nas cidades. Segundo o estudo, são as mulheres negras as principais vítimas da violência e exclusão social.

A pesquisa retrata as desigualdades estruturais de gênero, raça e classe no contexto brasileiro, enfocando os desafios enfrentados por mulheres e crianças no cotidiano da cidade, a partir da experiências de mulheres do Recife e Região Metropolitana. O resultado do trabalho foi apresentado em primeira mão numa apresentação ministrada na sede do INCITI/UFPE, na última quarta-feira (17), pela coordenadora de Políticas Públicas da entidade, Letícia Bortolon.

“O objetivo da pesquisa foi tentar entender a forma como as mulheres experienciam o cotidiano e propõe indicadores que ajudam a planejar, monitorar e avaliar melhor as políticas públicas de mobilidade e desenvolvimento urbano para permitir uma cidade melhor para as mulheres, sobretudo negras moradoras de áreas de periferia que são as que mais experienciam processos de violência, violência de gênero e exclusão social”, comentou a arquiteta Letícia Bortolon.

A pesquisa qualitativa foi realizada a partir de grupos focais que envolveram pelo menos 55 mulheres negras de áreas periféricas e revelou que o transporte ocupa um lugar central na vida de cada uma. O resultado denuncia uma situação de medo, silenciamento, violência e opressões diversas que vão desde a relação das mulheres com usuários do sexo masculino, passando pelo descaso por parte das empresas prestadoras de serviço e do próprio Estado.

Os dados da pesquisa revelaram que o assédio vivenciado pelas mulheres também parte dos agentes de segurança (IMAGEM: ITDP Brasil)

Entre os principais incômodos relatados está a forma desrespeitosa como alguns homens se reportam às mulheres durante a rotina dentro do transporte coletivo. “Chamou muito a nossa atenção a total falta de presença do Estado. Não é nem do descaso que as mulheres reclamaram. É como se o Estado não existisse. Sequer é citado. Durante as falas, elas repetiram muitas vezes que só podem ‘contar com Deus'”, observou a arquiteta Bortolon.

E não são apenas os usuários o alvo das queixas. Durante as entrevistas, também houveram reclamação sobre a atuação dos agentes de segurança pública, que também reproduz um comportamento assediador. Entre os relatos, os depoimentos revelaram que, ao buscar assistência após alguma situação de constrangimento, violência ou assédio, as mulheres foram revitimizadas. As mais idosas e com mobilidade reduzida também reclamaram da forma como são tratadas recorrentemente.

Além das vivências e experiências das usuárias do transporte coletivo, o estudo também buscou entender os fatores que influenciam no deslocamento das mulheres pela cidade a partir de pesquisas desenvolvidas por entidades que atuam com foco no gênero e raça. “Cidades Seguras para as Mulheres”, estudo realizado pela ActionAid Brasil, mostrou que, dos 86% dos assédios sofridos pelas mulheres no espaço público, 44% tem como cenário o transporte público.

A falta de creches em 55% dos bairros do Recife também é um fator que pesa na forma como as mulheres transitam na cidade, segundo uma pesquisa organizada pelo SOS Corpo – Instituto Feminista para a Democracia. Quanto menor a assistência, menos possibilidades das mulheres com idades entre 17 e 35 anos, principalmente, circularem no território urbano, ocasionando isolamento social, que pode provocar um quadro de depressão, por exemplo.

O contexto social e a falta de um transporte eficiente impacta no cotidiano de mulheres que vivem em áreas afastadas no centro do Recife (IMAGEM/ ITDP Brasil)

Indicadores e conclusões – Mulheres negras, de baixa renda e moradoras de regiões periféricas são as mais prejudicadas e expostas aos riscos da violência de gênero e da exclusão social. Essa foi a principal conclusão da pesquisa “O acesso de Mulheres e Crianças à Cidade”. “É preciso produzir dados qualificados desagregados por gênero, raça e classe e adotar metas e indicadores que mensurem os interesses/necessidades práticos e estratégicos das mulheres”, pontuou Bortolon.

Adotar um desenho urbano inclusivo, com planejamento coordenado entre mobilidade e uso e ocupação do solo é uma das medidas que precisam ser adotadas para sanar as desigualdades de acesso. Outra sugestão do estudo é a promoção do compartilhamento do sistema viário, com velocidades reduzidas, que priorizem os modos de transporte que mais atendem aos interesses de pessoas em situação de maior vulnerabilidade, entre eles as mulheres, e que não excluam ninguém: a caminhada, a bicicleta e o transporte público coletivo.

O planejamento sensível ao gênero deve considerar as diferenças quanto aos papéis que homens e mulheres desempenham na sociedade e o fato de que cada gênero tem interesses/necessidades específicos, que podem ser de caráter prático ou estratégico. A partir da investigação, o estudo apresentado por Bortolon também faz algumas recomendações e aponta indicadores que podem ser adotados pela administração pública para melhorar o acesso da mulher ao cotidiano urbano. Ao todo, 54 indicadores foram elaborados e distribuídos em eixos temáticos como habitação e infraestrutura, mobilidade, segurança viária, maternidade, transporte público, entre outros.

Texto: Lenne Ferreira (Inciti)