Mediação e Formação no LabCEUs

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Apresentação
Os CEUs – Centros de Esportes e Artes Unificados são equipamentos públicos instalados em bairros periféricos de diversas cidades brasileiras, contendo espaços destinados a práticas esportivas como pista de skate e quadra poliesportiva coberta, um prédio para as atividades do Centro de Referência de Assistência Social – CRAS, e espaços destinados à atividades culturais como: anfiteatro, biblioteca e espaço para acesso à tecnologias.

Uma sala com máquinas frente a frente para acesso à internet parece ser o único modo, já automático, como são montados os espaços de acesso às tecnologias. Essa configuração vem sendo disseminada desde os primeiros telecentros, através de políticas públicas com mais de 10 anos de existência e que seguem pautadas no conceito de inclusão digital. Se tratando de acesso à tecnologia parece estranho que uma mesma solução seja válida, ou tenha a mesma eficácia, durante uma década de intensas transformações sociais e tecnológicas.

Possivelmente, em todos os 340 CEUs[1] que ainda serão colocados em atividade no Brasil, mesmo com a autonomia dos municípios para preencher os espaços destinados à tecnologia, o paradigma do telecentro focado em inclusão digital será mantido como único formato conhecido. Dificilmente se verá salas montadas ou espaços destinados “ao interesse e à vontade do homem de transformar seu ambiente, buscando novas e melhores formas de satisfazer suas necessidades ou desejos.” (em wikipedia).

O programa LabCeus – laboratório de cidades sensitivas[2], que em 2014 apresenta uma proposta piloto de transformação de telecentros dos CEUs em laboratórios multimídia, encontra exatamente aquela anacrônica configuração destinada à inclusão digital e seus correspondentes espaços físicos – os telecentros – como os dados de campo com os quais tem que interagir nas localidades. Nessa interação, entre uma proposta de ativação de laboratórios e a ocupação existente dos espaços de tecnologia dos CEUs, cabe a ação contínua de desconstruir, reconstruir, reconfigurar, subverter e modificar este “lugar comum” da política pública de inclusão digital para a consolidação do que talvez possa ser reconhecido futuramente como os novos paradigmas de políticas públicas que fomentarem a utilização de tecnologia pela população.

O processo que pretende efetivar a transformação dos telecentros dos CEUs em laboratórios multimídia são aqui descritos como as estratégias e os métodos de ativação, desenvolvidos por uma equipe multidisciplinar, composta por grupos e indivíduos oriundos de diferentes iniciativas[3] espalhadas pelo Brasil e que se encontra sediada no Inciti – Pesquisa e Inovação para as Cidades/Universidade Federal do Pernambuco[4] à qual se somam os projetos de ocupação selecionados através de duas chamadas públicas nacionais, e ainda os bolsistas locais, sediados nos CEUs e indicados pela gestão local. Como estratégia mais ampla e que orienta toda a ação do projeto, figura a intenção de que os laboratórios tenham a sua origem pautada no território a que pertencem, que estejam conectados a realidade local, instigando os moradores do entorno, a serviço da comunidade e dos usuários do CEU. Essa estratégia é o principal apontamento para que os laboratórios se constituam como parte da realidade local e que, sendo assim, permaneçam em atividade por longo tempo, independente de financiamento público futuro.

Problemática
A materialização do espaço físico destinado ao uso de tecnologia dos CEUs como um telecentro, vem impregnada de uma proposta político pedagógica para o mesmo, que é tributária de uma visão sobre a relação entre o poder público e a sociedade civil. O espaço do telecentro é pensado para o desenvolvimento de dois tipos de atividades: aulas de formação sobre tecnologia, nas quais os alunos observam o professor e repetem operações nos computadores que estão em sua frente, e o acesso privado à internet, em que através de uma definição de tempo os usuários vão se revezando no uso, acompanhados pelo monitor, que tem o papel de controlar tempo e filtrar determinados usos considerados impróprios.

O “telecentro” vem por princípio carregado da idéia de controle, já que é pensado para a relação entre os usuários e tecnologia ocorrer através de um ou dois formatos no máximo. Dificilmente novos usos são permitidos em espaços destinados a este fim, que acabam por fortalecer o uso de redes sociais e jogos bastante populares quase que como único tipo de interação que se pode ter com o equipamento e também com os conteúdos web.

Ao contrário do telecentro, que é este espaço formal e metodologicamente definido, com usos facilmente descritos e que tem em sua disposição espacial uma configuração clara dos objetivos para que foi construído, um laboratório multimídia ou simplesmente um laboratório de tecnologia como os propostos pelo LabCEUs não apresentam dinâmicas pré-definidas de relação entre usuários e tecnologias. A idéia é que cada usuário do laboratório desenvolva seu próprio ritmo e seus próprios interesses, por isso os espaços podem e devem apresentar diferentes configurações e diferentes tipos de equipamento.

Os laboratórios são muito mais fluidos, assim como os desenvolvimentos e investigações que se pretende realizar neles. Essa diferença entre a “fluidez” do laboratório e a “rigidez” do telecentro é parte significativa dos conflitos que podem se engendrar no momento em que se imagina que o espaço destinado a um destes usos migra para o outro, ou ainda quando se pretende dividir o mesmo espaço para os dois usos. Nesse sentido, essa tensão é parte intrínseca das ativações do LabCEUs e não podem deixar de ser levadas em conta pelo conjunto de métodos propostos pelo programa.

Como forma de ativação dos laboratórios, o LabCEUs propõem um conjunto de ações que devem interagir no território dos CEUs, de forma a facilitar a emersão de propostas e dinâmicas autênticas e autônomas nas localidades, catalizadas pelo laboratório do CEU.

Parte importante da conexão das ações propostas com a realidade local, fica a cargo dos bolsistas locais, que são pessoas indicadas pela gestão local do CEU, contemplando um bolsista por laboratório, com o papel de fomentar o cotidiano da ativação, trocando os conteúdos com a comunidade do entorno, acompanhando o andamento da equipe do LabCEUs e facilitando as atividades dos bolsistas de ocupação.

A seleção dos projetos enviados para a primeira chamada pública levou em conta tanto a avaliação das equipes de gestão dos CEUs, quanto o ponto de vista dos integrantes da equipe que conheceram as realidades dos CEUs em visitas prévias realizadas com o objetivo de divulgação do Programa. Também participaram ativamente da seleção representantes do Ministério da Cultura e do InCiti. A intenção é que os bolsistas de ocupação se integrem diretamente com a realidade local em suas atividades junto ao laboratório.

Os demais ingredientes das ativações são as ações da equipe de mediação e formação do LabCEUs, que em momentos específicos do desenvolvimento dos laboratórios interagem presencialmente com as ocupações, além de manter um contato ativo e direto com a gestão dos CEUs, os bolsistas locais e os bolsistas de ocupação.

Como ação principal dessa equipe podemos destacar a rodada de Ativações, realizadas em todos os 10 CEUs. A ação é desenvolvida através de imersões de 3 a 5 dias nos laboratórios, onde pretende-se reunir: bolsista local, bolsistas de ocupação, bolsista de mediação e formação e interessados em geral. O objetivo principal da ativação é inserir uma dinâmica de desenvolvimento nos laboratórios, com a definição de produtos do laboratório em questão e a realização de um ciclo de desenvolvimento dos mesmos, através da utilização de uma combinação de metodologias ágeis de desenvolvimento, tais como Scrum e Story Maps.

A partir da ativação, a equipe de mediação e formação segue, à distância, na facilitação e acompanhamento do andamento dos desenvolvimentos, mantendo ativos os objetivos e as conexões com bolsistas de ocupação e locais. Esse acompanhamento à distância conta com a utilização de ferramentas de comunicação telemáticas (lista de emails, chat groups e da plataforma culturadigital.br), com aportes de conteúdos de interesse dos laboratórios como tutoriais e screencasts, assim como troca intensa de informações e articulações entre a equipe LabCEUs e as demandas dos laboratórios em ativação.

Esse conjunto de ações pretende confluir para o estímulo de uma dinâmica nos laboratórios baseada na experimentação e na investigação de tecnologias, na qual o conjunto de pessoas envolvidas se intenciona sobre a solução de problemas que foram elencados coletivamente. A interação na solução dos problemas estabelece a base para troca de conhecimentos entre os participantes e proporciona que o processo se estabeleça como sequência de aprendizagem, num formato em que “se aprende ao fazer” ou “se faz ao aprender”. De forma geral, o que se objetiva nesse processo é a produção de artefatos tecnológicos que visem ser implementados para interferir diretamente em uma dada realidade social, tendo em si o potencial de transformá-la.

Conclusão
A sala do telecentro está cheia, o monitor tem o controle, o gestor tem a chave. De que modo este cenário, bastante cômodo para os gestores e responsáveis pelos espaços multimídias dos CEUs, pode ser transformado em um Laboratório de Criação Artística, “que conecte tais espaços com a cidade e promova ideias sustentáveis de transformação social”? Esse “trânsito” entre o lugar conhecido e seguro e o desafio de tentar o novo, ainda desconhecido, passa obrigatoriamente por tirar os gestores e as políticas públicas de suas zonas de conforto. Neste sentido, as atividades de ativação dos laboratórios tem também estes objetivos específicos.

Os LabCEUs servirão, no mínimo, como experimentações documentadas que propuseram a transformação de telecentros em laboratórios, a superação da anacrônica política pública de inclusão digital, a mudança de relação entre o poder público e a sociedade civil, que deixa de ver as pessoas da comunidade como usuários do telecentro e passa a identificá-los como protagonistas no processo de inovação tecnológica. Esta proposta passa pelo estímulo à inquietação para transgredir e questionar padrões, com o desenvolvimento de diferentes propostas de uso e ocupação para estes espaços que ainda não existem, que estão em formação e que tem como premissa proporcionar, perceber, descobrir, inventar novas formas de interação entre as cidades e as tecnologias que a habitam; são os primeiros passos dos “Laboratórios de Cidades Sensitivas”.

As experimentações nos laboratórios começam com um motivo, com as ferramentas disponíveis, o espaço de trabalho e o conjunto de artesãos envolvidos: inúmeras tentativas, erros, avaliações, novas tentativas, novos erros, até o acerto que leva à criação do novo. Importa muito nesse processo a contribuição dos erros, a repetição, a colaboração, mais do que a criação, embora seja ela que una todo o processo. Parte fundamental do trabalho é documentar cada passo para criar o método, já que não existe receita pronta para se chegar no novo, já diria Feyerabend em seu “Contra o método”. Em meio a linhas de código de um software livre, na solda entre sensores e outros componentes, na construção, a artesã, uma mulher – contradição, tenta criar na negação ou afirmação, não importa – trabalha o erro à exaustão. Um artificie, já diria Senett. Laboratórios para se pensar, abstrair, interferir e interagir nas cidades em que estão inseridos.

O que se percebe frente ao objetivo de transformação do espaço comum da inclusão digital – que poderia muito bem ser o modo de classificação dos telecentros dos CEUs – em espaços de experimentação e pesquisa livre de tecnologias socialmente aplicáveis – laboratórios de tecnologia – é uma gama de desafios e enfrentamentos, que vão desde o escopo filosófico mais amplo: que diferencia os caminhos de apropriação tecnológica, passa pela relação entre sociedade civil e estado, apropriação e espaço público, direitos e acessos aos bens materiais e imateriais ou ainda à noção do processo como formador de pessoas autônomas no uso de tecnologia ou na dependência das mesmas; até questões mais práticas e diretas que vão refletir nos horários de uso do espaço, nas possibilidades de alteração dos layouts existentes, no uso livre da banda de internet disponível, do uso livre dos equipamentos, dos tipos de equipamentos e ferramentas disponíveis no espaço, da liberdade de desmontagem dos mesmos para reconfiguração do uso de suas peças e partes, entre muitas outras questões que poderão ser relatadas a partir das experiências práticas dos LabCEUs.
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[1] No momento de redação deste texto de um total de 340 CEUs, considerando todos os processos em andamento em diferentes níveis de execução, cerca de 90 se encontram finalizados e inaugurados .
[2] Esse programa vem sendo implementado em dez CEUs definidos pelo Ministério da Cultura como “projetos pilotos” que estão espalhados por todas as regiões do Brasil, tendo suas atividades ocorrendo durante o ano de 2015.
[3] Grupos e indivíduos que atuaram junto à “Ação Cultura Digital”, em interface direta com o movimento nacional de pontos de cultura. Contendo integrantes de pontos e pontões de cultura, tuxauas, facilitadores e mediadores de cultura digital, jornalistas, comunicadores, midialivristas, arquitetos e urbanistas, artistas, fazedores, tecs…
[4] O InCiti/UFPE aborda a cidade como um organismo vivo, em que natureza, seres vivos e tecnologias estão em constante sinergia. Resultado da união de pesquisadores comprometidos com o desenvolvimento urbano, social e das tecnologias da inovação, o InCiti/UFPE é uma rede formada por arquitetos/urbanistas, biólogos, botânicos, sociólogos, psicólogos, engenheiros, economistas, designers, profissionais de comunicação e tecnologia da informação. Com uma perspectiva transdisciplinar, a equipe se dedica a investigar a experiência urbana, analisar qualidades do espaço e do comportamento dos habitantes.
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