Escrito colaborativamente por Adriano Belisário, Jéssica Miranda, Maíra Brandão, Giseli Vasconcelos, Ricardo Brazileiro e Ricardo Ruiz.
1. Introdução
Nesta investigação faremos uma reflexão sobre os desafios atuais da inovação tecnológica a partir da noção de cidades sensitivas e da experiência dos laboratórios de prática aberta para a transformação social. Longe de ser conclusivo, o texto pretende enfatizar questões que permeiam os Laboratórios de Cidades Sensitivas – LabCEUs e está estruturado em quatro breves partes. A primeira parte situa abordagens frente à noção de inovação tecnológica; posteriormente, um panorama do contexto político-institucional sobre os espaços nos quais tais laboratórios encontram-se inseridos; a terceira parte apresenta questões ligadas ao urbanismo emergente a partir da experiência do grupo de pesquisa InCiti – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ao final deste percurso levantamos possíveis desdobramentos para futuras ações de políticas culturais.
2. Inovação Tecnológica e Territórios
Devido à contínua impossibilidade de participar plenamente das ofertas materiais e dos padrões de consumo da modernidade, as chamadas classes menos favorecidas concretizam soluções que estimulam a apropriação consciente e imaginativa de diversas tecnologias. Para compreender a dimensão profunda da inovação tecnológica e social em nossos tempos, não devemos nos ater aos últimos avanços das grandes indústrias de bens de consumo, nem às novidades do empreendedorismo mercadológico das start-ups focadas no lucro imediato e alimentadas por processos muitas vezes mantidos sob segredos industriais, patentes, copyright ou outros tipos de apropriações privadas do conhecimento. Há que se considerar urgente a inovação tecnológica não a partir desta perspectiva, mas de outra, social. Tal mudança implica em reconhecer e estimular soluções e arranjos tecno-sociais produzidos e desenvolvidos através de processos colaborativos territoriais, visando a promoção do bem estar comum ou de um viver bem. Neste sentido, conforme detalharemos a seguir, o programa de extensão Laboratórios de Cidades Sensitivas – LabCEUs – promove a junção de práticas através de uma plataforma de trabalho que agrega primeiramente organizações (como o Coco de Umbigada, Nós Digitais e a InCITI/UFPE, sobre a qual nos deteremos na terceira parte do texto) para mobilizar ações e mediações a partir de suas experiências, conciliando processos de aprendizagem, troca entre as redes e produção de conhecimento em laboratórios digitais espalhados pelas cinco regiões do Brasil. Em seguida, esta plataforma é ampliada para novos atores, a partir de uma chamada pública para ocupações experimentais de inovação tecnológica voltadas à realidade das cidades.
Ao invés da tecnologia de ponta, trata-se aqui de uma tecnologia das pontas, que é disseminada globalmente, sem deixar de ser específica em cada lugar: a gambiarra brasileira é sinônimo do mesmo processo conhecido como jugaad na Índia. Nesta reflexão, o jogo entre escassez e abundância aparece como central. Aqueles que não dispõem de meios ou recursos para participar plenamente dos últimos padrões tecnológicos contemporâneos conseguem alterar – em seu próprio ambiente – o impacto da cultura de massas e os propósitos dos objetos industriais, graças a uma cultura e uma tecnicidade constituída coletiva e territorialmente no trabalho e no cotidiano. A escassez material revela-se como abundância criativa, cornucópia de modos de ser e fazeres compartilhados, colaborativos e dinâmicos. Até então menosprezados ou mesmo reprimidos, estes modos de ser/fazer se constituem como uma espécie de riqueza da pobreza. O que aparenta ser uma fraqueza é, portanto, uma força, resultado da integração orgânica entre território e seus habitantes. Trata-se, enfim, de voltar o olhar para os territórios sociais não a partir da perspectiva da carência, mas da potência.
Esta tecnologia das pontas também se relaciona aos dez anos de experiência das ações de cultura digital no Brasil, potencializadas pela ramificação de investimento público para Pontos e Pontões de cultura digital. Não necessariamente subservientes deste investimento, mas garantindo seus espaços, criando nós entre comunidades e fortalecendo suas redes. “A gente se reconhece na comunidade. Quem chancela o Ponto de Cultura é o próprio povo”, disse Beth de Oxum, do Coco de Umbigada, que atua no bairro de Guadalupe (periferia de Olinda-PE) com ações de valorização de saberes e práticas ancestrais no território, aliada com uma bem sucedida pesquisa e experimentação com tecnologias e novas mídias, envolvendo um laboratório de mídia, uma rádio livre (Rádio Amnésia) e a criação de jogos para web, como o Contos de Ifá.
Este exemplo reforça que – mesmo que se fale em gambiarra – trata-se uma inovação tecnosocial que expande as formas de entendimento e compreensão nos campos da educação, cultura e tecnologia. É estratégico que cada território se afirme na sua posição singular e seja ativo na construção de singularidades, a partir dos diferentes modos de viver e maneiras de existir exercitadas no cotidiano, tal como máquinas de subjetividades. (GUATARRI, ROLNIK, 1996 p.59) As maneiras de fazer próprias de cada pessoa criam, passo a passo, práticas plurais de constituição do cotidiano, muitas vezes invisíveis aos sistemas que as observam (como a grande mídia, o Estado e o mercado). A todo momento, tais práticas reconfiguram seus próprios atores e permitem uma intervenção direta em zonas urbanas. (CERTEAU, 2008). Ou seja, ao invés de buscar soluções que fogem do território, fazer o território fugir, transbordar, ir além da medida (DA SILVA, 2011). É neste contexto que se encontram as necessidades de estimular ações coletivas de ocupações nos territórios para a transformação sócio-cultural.
Deste modo, impulsionados pela apropriação local de dispositivos tecnoculturais globais, tornando-os capazes de transformar uma realidade local, alguns destes espaços de formação e produção da/na periferia surgem como alternativa tanto à mercantilização do espaço quanto à homogeneização dos territórios pelo mercado – ou dos discursos, pela academia. Nesses locais, as finalidades comuns e sociais se apresentam em primeiro plano em relação àquelas baseadas no lucro ou no rentismo privado, permitindo que ações populares ampliem o seu papel na estrutura econômica, ao mesmo tempo em que a subvertem. Os efeitos da busca por cidadania e bem estar social atrelados aos efeitos da cultura enraizada no território tornam-se poder de transformação social criativa que se expressa a partir da imaginação técnica. (SANTOS, 1991 p.66)
Tradicionais ações colaborativas e práticas emergentes em rede podem criar outras economias, outras culturas, outros discursos e novas políticas territorializadas, lidando tanto com a experiência da escassez, quanto com a da convivência e da solidariedade. Não se trata de redefinir o conceito de desenvolvimento, e sim de questionar a própria noção do mesmo: inventar uma visão cultural da economia ao invés de uma visão econômica da cultura. (SZANIECKI et al, 2011). Para isto, é necessário atenção na relação entre arranjos produtivos locais e os recursos e planejamentos nacionais. O desafio consiste em evitar modelos que reconheçam apenas o que se traduz em produção mensurável; e incentivar o trabalho de polinização, ou seja, o trabalho da cultura como relação, intensidade de relações sociais de produção de mundos. (COCCO, 2010).
3. Os CEUs e as políticas em cultura digital no Brasil
Sob coordenação da Casa Civil da Presidência da República, o projeto dos Centros de Artes e Esportes Unificados – CEUs foi concebido com uma perspectiva interministerial, envolvendo Ministério da Cultura, Ministério do Esporte, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e Ministério da Justiça. O espaço projetado pela Presidência consiste em uma praça, reunindo programas e ações culturais, práticas esportivas e de lazer, formação e qualificação para o mercado de trabalho, serviços socioassistenciais, políticas de prevenção à violência e de cultura digital. Em comum, o objetivo de promover a cidadania em territórios de alta vulnerabilidade social no Brasil. Após a construção, é realizada uma mobilização da sociedade para a “ativação” da unidade, buscando agregar iniciativas “socioculturais, socioassistenciais, recreativas, esportivas, de formação e qualificação”. (TAMI, 2014 p. 1) Vale destacar a ausência de uma abordagem socioambiental na proposta inicial, mas sobre este tema discorreremos posteriormente.
Os equipamentos culturais dos CEUs são parte de um sistema, que envolve também o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e as concorridas quadras de esporte nas praças. A respeito da implementação de espaços físicos destinado à cultura, havia no Ministério da Cultura a antiga e nunca implementada experiência das BACs (VELOSO, 2015) e, mais recente e concretamente, do programa Mais Cultura ou PAC da Cultura, no eixo de Cultura e Cidades. Ao contrário dos projetos padronizados dos CEUs, a metodologia do Mais Cultura pareceu permitir uma ampla gama de experimentações e criações arquitetônicas e urbanísticas, como observa a equipe de Coordenação Geral de Mobilização Social e Gestão da Diretoria de Infra-Estrutura Cultural (DINC) do Ministério. A respeito da experiência com o Mais Cultura, comentam: “Quando o debate sobre as Praças do PAC foi inserido pela Casa Civil na agenda do MinC no início de 2010, haviam 26 equipamentos do Mais Cultura – espaços e bibliotecas – em implementação sob a metodologia do programa […] No âmbito da arquitetura, foram desenvolvidos diversos modelos de referência, incluindo projetos específicos para áreas indígenas e quilombolas, bem como considerando a diversidade local, principalmente no que se referia às práticas culturais, bioclima, técnicas construtivas (madeira, solo-cimento, bioconstrução), disponibilidade de área, tamanho da população beneficiada e dotação de recursos”. (TAMI, 2014, p. 7) Sobre os CEUs, a análise é outra: “Como nos demais equipamentos do PAC 2 Comunidade Cidadã, a União oferece aos municípios projetos arquitetônicos de referência, que devem ser adaptados aos terrenos, podendo ser modificados, desde que não haja alteração do programa de usos e da capacidade dos espaços”. (TAMI, 2014, p. 13). No entanto, observam: “Na prática, os projetos têm sido pouco modificados e, ainda que os modelos acarretem em uma padronização arquitetônica pouco desejável nas diferentes regiões, culturas e condições ambientais brasileiras, o fornecimento do projeto de referência é desejado pelos entes federados, pois facilita a execução por suas diminutas equipes de engenharia e arquitetura”. (Idem, ibidem) De fato, o principal legado do programa Mais Cultura para os CEUs não se deu tanto na estrutura física dos mesmos, mas em sua arquitetura de gestão. Apesar de terem a construção financiada pelo Governo Federal e serem mantidos pelo Governo Municipal, os CEUs prevêem mecanismos de gestão compartilhada, através de um Grupo Gestor Local, formado pela Prefeitura, a sociedade civil organizada e comunidade. O modelo de estatuto disponibilizado pelo Ministério da Cultura prevê ainda a exigência de ao menos uma vaga da cota de sociedade civil organizada ser destinada ao Pontão ou Pontos de Cultura do município. Ainda que por vezes esta previsão não se realize na prática, certamente tal definição contratual é um passo importante para a promoção da cidadania nestes territórios, apontando em pequena escala para práticas de democracia participativa, cruciais para superar a atual crise de representatividade na sociedade brasileira. Em março de 2015, o governo federal planejava construir 348 unidades, tendo já inaugurado 58 delas. A construção é paga pelo Planalto, mas a manutenção do espaço fica por conta da Prefeitura. Terminadas as obras, esta recebe R$ 21.950,00 para realizar um processo de mobilização social para ativação da unidade e formação do Grupo Gestor Local.
A respeito da relação dos CEUs com o programa Cultura Viva e a rede dos Pontos de Cultura, a equipe da DINC comenta que “na medida em que se concretizam os equipamentos, vem se fortalecendo a integração entre infraestrutura cultural e Cultura Viva, que deve contar com ações e orçamento específico do Ministério da Cultura em 2015, institucionalizando-se o apoio a agentes cultura viva nas Praças e seus territórios e a ocupação e participação na gestão dos espaços pelos Pontos e Pontões. […] Os equipamentos devem cada vez mais funcionar como articuladores e fomentadores de redes de Pontos e Pontões de Cultura, e vice-versa, fortalecendo seu papel de valorização do protagonismo e da diversidade cultural”. (Idem, p. 11)
Através da Fundação Nacional das Artes e parcerias com Universidades Federais, o Ministério da Cultura oferece ainda apoio pontual à ocupação de algumas unidades dos CEUs já inauguradas. A partir desta articulação com grupos de pesquisa universitários, foram disponibilizados recursos para o desenvolvimento de ações de estímulo à ocupação cultural nos CEUs a partir de 3 eixos: cultura digital, cineclubes e música, envolvendo respectivamente a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade do Grande ABC e a Universidade Federal de Goiás, em geral através dos setores de extensão destas instituições. Os programas de ocupações nos CEUs abriram um precedente dentro do MinC na articulação de uma rede de grupos de pesquisas com universidades e sociedade civil para gerir e implementar ações em escala cultural e científica. Neste texto, iremos focar exclusivamente no eixo de Cultura Digital, onde surgem os Laboratório de Cidades Sensitivas – LabCEUs. De antemão, um questionamento válido poderia ser feito a respeito da eficácia da segmentação do apoio por linguagens, visto que muitas vezes tais práticas encontram-se interconectadas.
Bancada de trabalho do laboratório ‘A Canção do Entulho’, conduzido por Bruno Lanza e Fred Calazans, no LabCEUs de Sete Lagoas(MG). A proposta consiste em uma investigação e experimentação sonora a partir de materiais descartados na comunidade, desde da coleta dos instrumentos à composição da música e gravação do videoclipe. Um exemplo da interconexão entre as práticas de cultura digital com outras linguagens, como a música, audiovisual, teatro, etc.
Bancada de trabalho do laboratório ‘A Canção do Entulho’, conduzido por Bruno Lanza e Fred Calazans, no LabCEUs de Sete Lagoas(MG). A proposta consiste em uma investigação e experimentação sonora a partir de materiais descartados na comunidade, desde a coleta dos instrumentos à composição da música e gravação do videoclipe. Um exemplo da interconexão entre as práticas de cultura digital com outras linguagens, como a música, audiovisual, teatro, etc.
Em meados do século XX, Anísio Teixeira afirmava que a máquina de fazer democracia é a escola. Atualmente, o ferramental tecnológico conectado à internet torna-se também uma possível máquina democrática, onde há a oportunidade de participacão ampla, através do debate de ideias, apresentação do contraditório e uma busca por co-existência, ainda que tal diversidade muitas vezes encontre dificuldade para ser catalisada em torno de um mesmo território. No inicio deste século, os telecentros, células iniciais de articulação sócio-digital no Brasil, proporcionaram aos cidadãos acesso aos computadores e à internet durante uma década, muitas vezes sendo a única opção disponível no local, tornando-se assim também um lugar de encontros. De lá para cá, metabolizam e ainda fomentam formatos inovadores e práticas a partir de iniciativas que vão além do simples acesso para explorar reais potencialidades da produção em rede. Ao mesmo tempo, a situação social e o acesso às tecnologias também mudaram drasticamente na última década. Deste modo, a estrutura embrionária dos telecentros, parcialmente modificada do Norte ao Sul do Brasil através da Ação Cultura Digital, no programa Cultura Viva, possibilitou e estimulou a emergência de laboratórios tecnológicos experimentais e comunitários, onde novas formas de sociabilidade surgem e se desenvolvem com plenos interesses de reforma e expansão de políticas condicionadas. E se mostra urgente ao Ministério da Cultura o apoio e o fomento dessas iniciativas contemporâneas associadas à Cultura Digital. Prova desta urgência é a dificuldade de incorporar em outras pastas princípios e propostas de Cultura Digital do Ministério da Cultura, tal qual formuladas ao longo dos últimos anos: as aproximações destas políticas com o Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT) são parcas, perto do potencial das práticas que já são desenvolvidas de inovação tecnológica comunitária no Brasil. Além de não incorporar as pautas, o MCT parece caminhar em direção diametralmente oposta, quando estimula o uso de tecnologias privadas e proprietárias, como o Facebook.
Ao refletir sobre tais transformações no Brasil, em pesquisa sobre arranjos experimentais criativos em cultura digital desenvolvida para o Ministério da Cultura, Felipe Fonseca propõe uma alternativa à noção de ‘cultura livre’ – conceito central na concepção política da Ação Cultura Digital.
“Pode-se, em seu lugar, trabalhar com a ideia de uma “cultura da abertura” processual e sempre dependente de intenção e contexto. Uma cultura da abertura funcionaria como arcabouço dentro do qual diversas formas de atuação poderiam se relacionar. Da própria publicação de conteúdo multimídia com licenças livres, passando por investigações culturais ancestrais, pelo incentivo à inovação e à produção criativa socialmente relevantes, ou ainda pela pesquisa de intercâmbios possíveis entre permacultura, economia solidária e a cultura digital – tudo isso faria referência ao campo, ainda por se definir completamente, da cultura da abertura. Por um lado escapa-se assim à limitação da lógica transacional que desvaloriza o potencial da produção livre por conta de eventual baixo alcance de determinado produto cultural, e por outro lado afirma-se o gesto intencional da generosidade como elemento politizador do fazer cultural, presente na humanidade desde milênios antes da criação do primeiro computador” (FONSECA, 2014)
Não se trata de garantir a manutenção de determinado papel social (como o de usuário das tecnologias) em um ambiente conectado, e sim de reconhecer e potencializar novos papéis e possibilidades de expressão que podem ser articulados com estas novas tecnologias, direta ou indiretamente. A partir desta perspectiva e do acúmulo das ações e pesquisas estabelecidas no contexto da cultura digital no Brasil, formam-se as bases conceituais, práticas e políticas para a implementação, nos Laboratórios Multimídia dos CEUs, do programa piloto ‘Laboratórios de Cidades Sensitivas – LabCEUs’, realizado através de parceria entre o Ministério da Cultura – Secretaria de Políticas Culturais, e a Universidade Federal do Pernambuco, por meio do InCiti – Pesquisa e Inovação para as Cidades. Além de pesquisadores e extensionistas do InCiti/UFPE, a equipe do LabCEUs é formada por participantes do Ponto de Cultura Coco de Umbigada, Pontão de Cultura Nós Digitais e outros colaboradores, em diferentes estados, com larga experiência em projetos envolvendo cultura digital, Pontos de Cultura e laboratórios de mídia e tecnologia no Brasil.
Em março de 2015, o Laboratório de Cidades Sensitivas deu início à ocupação dos laboratórios multimídia (outrora chamados de telecentros) de 10 unidades do CEU: São Félix do Xingu (PA), Horizonte (CE), Petrolina (PE), Luis Eduardo Magalhães (BA), Sete Lagoas (MG), Colatina (ES), Sertãozinho (SP), Campo Largo (PR) e Erechim (RS). Apesar de distantes no mapa, é possível observar diversos fatores comuns a estas unidades, a começar pelo território onde estão inseridas. Situados em periferias de cidades médias, os CEUs encontram-se em áreas de vulnerabilidade social, muitas vezes estigmatizadas localmente pela criminalidade. Todos os projetos foram selecionados a partir de Chamada Pública, que recebeu mais de 250 propostas de todo o Brasil, demonstrando um enorme potencial e demanda de apoio para inovação tecnológica nas periferias, envolvendo uma ampla gama de áreas de atuação como linguagens artísticas, mídias interativas, tradições e territórios. A estrutura do programa LabCEUs impulsionou uma rede de pensadores e fazedores tecno-culturais aliados a grupos de pesquisas nas Universidades Federais para gerir e implementar as ações laboratoriais em escala cultural e científica com foco na transversalidade entre os temas: comunicação, interatividade, espaços e territórios e raízes e tradições. Articulando em rede diferentes iniciativas nestas cidades, os Laboratórios de Cidades Sensitivas visam experimentar práticas tecnológicas que estimulem novas relações e diálogos entre as pessoas, a cidade e o ambiente a sua volta, repensando as estruturas existentes dos espaços urbanos para assim modificar o cotidiano. Por práticas tecnológicas compreendemos não apenas computadores e máquinas, mas principalmente as relações sociais, o pensamento e as formas com as quais a comunidade se apropria da cidade. O Laboratório de Cidades Sensitivas busca apoiar e estimular a emergência de laboratórios experimentais comunitários, onde novas formas de sociabilidade e tecnicidade possam surgir e se desenvolver. Esses laboratórios são baseados no acesso às tecnologias de baixo-custo, através de um modelo de compartilhamento de ideias que possibilita a projetos experimentais desenvolvidos comunitariamente se fortalecerem. Estimula-se assim a construção de diversos dispositivos faça-você-mesmo de cartografias sensitivas e expressões estéticas, que são, em sua gênese, motrizes da inovação intelectual e produtiva da economia da cultura. A proposta de ocupação também singulariza uma forma emergente de construção de vizinhança, através de uma plataforma onde convergem ações de várias regiões que se comunicam entre si, além de estabelecer intersecções com uma base de trabalho remoto.
Por conta deste caráter constitutivo, em um cenário onde o acesso à internet é crescente, é também fundamental que esses laboratórios se conectem antes de tudo com a cidade, operando como uma espécie de hub, incentivando a produção de encontros potentes do ponto de vista da apropriação da tecnologia a favor da transformação social. Cidades sensitivas revelam-se assim como uma espécie de sistema operacional vivo, um sistema complexo de propriedades emergentes, onde sociedade e natureza encontram-se imbricadas. Ao mesmo tempo em que um sistema de objetos (naturais, técnicos, objetivos) condiciona a forma como se dão as ações humanas (sociais, culturais e subjetivas), o sistema destas ações também leva à criação de novas realidades ou novos mundos: reside nessa interação a constante dinâmica de transformação do espaço.
4. Urbanismo Emergente
O InCiti – Pesquisa e Inovação para as Cidades é um grupo de pesquisa da pró-reitoria de extensão e pesquisa da Universidade Federal de Pernambuco-UFPE que reúne acadêmicos comprometidos com a qualidade da vida urbana. A equipe é formada por arquitet@s, biólog@s, botânic@s, sociólog@s, psicólog@s, engenheir@s, economistas, designers, profissionais de comunicação, cientistas da computação e outr@s. Com uma perspectiva transdisciplinar e sistêmica, a equipe se dedica a investigar a experiência urbana, analisar qualidades do espaço e do comportamento dos habitantes, além da busca por compreender as pessoas e suas reflexões cotidianas sobre a cidade.
Na prática, isto se dá através dos projetos Laboratórios de Cidades Sensitivas e Parque Capibaribe, programa municipal de infraestrutura urbana que visa transformar Recife em uma cidade-parque pelas próximas três décadas. Esta ação abrange 35 bairros – um terço do município recifense, e procura aumentar em quase vinte vezes a área verde urbana. O Parque Capibaribe também desenvolve dispositivos de diálogo com a população, como a promoção de workshops para contribuições e experimentações de ideias a serem implantadas nas bordas do rio e pela criação de uma plataforma web colaborativa para promover uma consciência coletiva democrática.
Muito além da noção de ‘cidades inteligentes’ (smart cities) baseadas em soluções privadas para a controle e vigilância, os Laboratórios de Cidades Sensitivas e o Parque Capibaribe mobilizam o lado sensível das cidades, encarando-as como organismos constituídos pelos seus ocupantes, por suas naturezas minerais, animais e vegetais, suas infraestruturas urbanas e tecnológicas. A dimensão socioambiental é fundamental: mais que soluções urbanísticas planejadas de cima para baixo, um urbanismo emergente, tático destes e nestes organismos híbridos, capaz de fortalecer recursos, territórios, culturas, práticas e conhecimentos comuns. O que interessa, aqui, são as cidades como espaços constantes de aprendizagem.
“O urbanismo emergente ou o planejamento de baixo para cima se diferencia do planejamento urbano por se basear na participação cidadã como ponto importante de “construção” da cidade. Poderíamos resumir dizendo que o urbanismo emergente realiza uma cartografia do papel dos cidadãos e habitantes como produtores da cidade de baixo para cima, frente à visão do planejamento urbanístico tradicional.” Além disto, esta outra prática de urbanismo não é emergente somente por vir de baixo para cima, mas também pelo fato de virem à superfície muitas vezes em contextos de crise, de onde alguns autores derivam a noção semelhante de “urbanismo de sobrevivência”. (HUERTA, 2011)
5. Futuros possíveis
Pensamos territórios e pessoas considerando seus movimentos e fluxos e não como entidades estáticas. Suas histórias e relações com o espaço são fundamentais para compartilhar saberes e necessidades, para assim vislumbrar mudanças efetivas com a cidade. De onde elas vêm e para onde vão? Os fluxos humanos formam territórios que também correspondem à engrenagem de uma cidade. Além disso, quais as reações de fatores naturais, políticos e econômicos que levam famílias e agrupamentos a mudarem constantemente de território, tendo que se recriar, reorganizar a cada período? Diante de um contexto histórico brasileiro, entre remoções, ocupações e programas como Minha Casa Minha Vida, esse fenômeno é latente e, com tanta diversidade de histórias, como fazer então o contraditório compartilhar o mesmo espaço?
Estamos diante de um desafio: como propor tecnologias de inovação repensando o espaço a partir do uso de laboratórios e oferecer algo além da informática básica e acesso à internet? Podemos oferecer ferramentas para aproximar uma comunidade e potencializá-la para intervir em suas realidades? Quais dinâmicas são possíveis para esse desafio? O LabCEUs traz consigo estas questões a fim de superá-las, através de práticas e tecnologias que poderão emancipar interesses focados na qualidade do espaço em que vivemos.
Acreditamos que estes laboratórios podem contribuir não só para o desenvolvimento cultural, social, afetivo e econômico do país, como também para a promoção de práticas cidadãs, a partir de um conhecimento participativo que envolve a tecnologia digital e de informação capazes de ampliar e diversificar escolhas, e assim ressignificar cidades, numa combinação adequada de técnicas e políticas, com o objetivo de conscientizar sobre a importância do território para seus habitantes como espaços identitários, parte de suas percepções, histórias e ações. Com esta inspiração, articula-se a experiência do LabCEUs – Laboratórios de Cidades Sensitivas como espaços que promovem modos de viver/fazer baseados na experimentação e na aprendizagem colaborativa, utilizando-se de tecnologias e redes digitais focadas nas inovações cidadãs para suas cidades. Espaços nos quais pessoas e grupos sociais, com diferentes conhecimentos e diferentes graus de especialização, possam se reunir para desenvolver projetos de experimentações tecnoculturais, que se apresentem propícias ao exercício da inventividade e à floração e potencialização das demandas e soluções coletivas e individuais. Consideramos estas iniciativas como estruturais para a construção de um verdadeiro espaço humano, onde uma nova paisagem seja possível.
6. Referências
CERTEAU, Michel: A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008
COCCO, Giuseppe. As Políticas Culturais e o Bolsa Família: Sobre uma (breve) conversa com o Ministro Juca Ferreira. 2010. http://leituraglobal.org/as-politicas-culturais-e-o-bolsa-familia-sobre-uma-breve-conversa-com-o-ministro-juca-ferreira/
DA SILVA, Rociclei. Informação, cultura e cidadania no coração da periferia pelas batidas do hip hop. Rio de Janeiro, Dissertação, 2011 (Mestrado no IBICT/Ministério da Ciência e Tecnologia).
FONSECA, Felipe. RedeLabs: Políticas Públicas para cultura digital experimental. 2014 http://culturadigital.br/redelabs/2014/08/politicas-publicas-para-cultura-digital-experimental/
HUERTA, Tania. Procesos participativos hacia la definición de un urbanismo emergente. 2011. Disponível aqui.
GUATARRI, F, ROLNIK, S. 1996. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes.
VELOSO, Drica. Das BACs aos CEUs. 2015. Disponível em: https://dricaveloso.wordpress.com/2015/01/13/das-bacs-aos-ceus/
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. São Paulo: Hucitec, 1991.
TAMI, Isadora. Conceitos, desafios e potencialidades do PAC da Cultura. 2014. Disponível em: http://ceus.cultura.gov.br/images/pdfs/reflexoes_PAC_textos/00_Reflexoes_PAC_da_Cultura_2014_Apresentacao.pdf
SZANIECKI, Barbara ; SILVA, R. . Políticas Culturais Vivas: raízes e redes do Movimento Enraizados. In: II Seminário Internacional de Políticas Culturais, 2011, Rio de Janeiro. Artigos do II Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2011.